![]() Legitimação e Autenticidade: considerações em torno do fenómeno estéticoTeresa Noronha Universidade Aberta Introdução A
axiomática que desde Platão, Aristóteles, Hegel, Kant e
Nietzsche se vem consolidando de modo claro acerca do fenómeno estético, pode
hoje entender-se não apenas como um
já longo processo mas também como parte de uma cadeia explicativa na linha
paradigmática do conhecimento sobre o fenómeno estético. Na verdade, os
dados desde aí obtidos e residentes nessa cadeia têm sido considerados
bases lapidares e ao que parece não existe, até à data, uma refutação completa antes processos de derivação que mantêm
afinal a mesma matriz. Será
portanto partindo daqui que abriremos uma breve reflexão acerca da obra de
arte direccionando o conjunto dos problemas por esta levantados às questões
da sua legitimação e autenticidade, bem
como aos discursos que a têm rodeado. Com
este propósito, o uso metódico do princípio aporético,
tal como este se apresenta
na Metafísica, será
seguido na continuidade e na destrinça
da questão “o que é a obra de arte” colocada na sua originalidade
essencial afinal aporética como se
pode ler em Aristóteles, pois
que: “(...) deter-se minuciosamente numa Aporia é útil para quem quer
encontrar uma saída adequada. Com efeito, a saída adequada não é senão
a solução que havia sido previamente aporética.”
(Aristóteles, 1994: III, (B), 128) . Será
portanto sobre este princípio metodológico, princípio que afinal se vê
aperfeiçoado na recente Fenomenologia nascida de Husserl, continuada em
Heidegger[1],
Ricouer, Lévinas, Derrida, entre outros, até aos mais recentes hermeneutas
filosóficos, que alguns pontos da referida Aporia
se abordarão. Pressupostos metodológicos A
pergunta essencial que pergunta “o
que é a obra de arte” deverá ter
claro a sua natureza filosófica e
neste sentido a metodologia sobre a qual deve assentar a investigação a
saber: acerca dos princípios da origem (pela sua intencionalidade fenomenal), dos da natureza
(pela sua evidência estatuária) e dos das possibilidades
de verdade (na analítica ao desenvolvimento intrínseco da(s) teoria(s) estética(s)
ainda que sobre esta se aceite o princípio do que se determinou como Estética
- Normal [2]). Mas
a pergunta para além da exigência destes
princípios como bases intrínsecas ao objecto da análise, implica ainda
uma outra questão, essa mesmo que se
encontra na base original de todas as perguntas: a consciência.
Ora o recurso à Fenomenologia, como metodologia, ficaria desde aqui
justificado uma vez que por esta se atende ao problema na sua totalidade
resgatando a importância do sujeito, (outrora “sonhado epistémico” na
linha do racionalismo crítico de Bachelard) no plano complexo da sua dimensão
ontológica. Todavia, porque a finalidade deste estudo se dirige à esfera
das interferências discursivas que rodearam o problema em causa, não
penetraremos na Fenomenologia da Arte conscientes de que a análise da
consciência não prescinde desta, na abordagem às categorias
apercepcionais, antepredicativas e predicativas que envolvem o acto
criativo. A
discussão em torno da obra de arte agora presente circunscreve-se apenas à
análise e à esfera do(s) discurso(s) que lhe legitimaram
no tempo como temporalidade (cf. Heidegger, 1988-89) e no espaço como Historizität
(idem),[3]
valores relativos ou absolutos que a seu modo lhe foram garantindo
o selo de uma “autenticidade”. Será pois na esfera da representação
e na análise do pensado sobre a
obra de arte, como exteriorização, que esta investigação se centra deslocando-se da
esfera do representado para a
esfera do(s) representante(s)[4]
na linha do que eventualmente se
poderá compreender como uma
intentio operis à luz dos
desenvolvimentos da Semiótica da
Recepção. Desta
partida o simples olhar de “superfície” deixa-nos constatar que as
teorias sobre a criação artística
e os discursos que a pretenderam
legitimar se vêem multiplicados
de forma estonteante, é que desde a modernidade, de ambiente de resto propício
à reflexão, o impulso transmitido pelas sucessivas reinterpretações do Estagirita
não parou de crescer, de se ramificar, de se espalhar, aleatoriamente; uma
paisagem outrora ordenada surge agora ausente para em seu lugar, um belíssimo
caleidoscópio com o qual se pode entreter a razão, se apresentar. 1. O despertar teorético No
seguimento de alguns dos marcos axiomáticos apontados e atravessando-os
numa ordem sequencial, encontraremos curiosas continuidades que estabelecem
à obra de arte graus e parcerias de legitimidade no quadro do conhecimento
particular e universal. Em
Platão a obra de arte é pensada como Imitação. Mas no contexto
da filosofia platónica
as artes plásticas
dever-se-iam compreender rudimentares e imperfeitas reproduções da obra
da Ideia. A
verdade é que as obras de arte na Grécia antiga, cujo o esplendoroso
desenvolvimento não precisa de ser lembrado, não foram a contrario sensus ponto de excelência do pensamento e da reflexão;
na teoria platónica é bem visível o seu desprezo. Todas as artes contêm
características distractivas, desfavoráveis ao processo da dianóia e, tratando-se
apenas de eikones sobre os eikones
da doxa, estas mais não fazem do
que retardar o processo de
ascensão à verdade da Ideia (cf.
Platão, 1988: Livro II, VI. 509d
- 511e, Livro X). A
expulsão da poesia
e dos poetas da Cidade, tema bem explícito na Republica (cf. idem:
Livro X), e problemático objecto de estudo para a grande maioria dos
helenistas tem sido todavia encarada como “um requerimento para que a
Filosofia tome o lugar que a Poesia até aí tinha preenchido na prática
educativa”(cf. idem: 37, nota 92). O facto é que para Platão, o
enleio harmonioso e poético não se comprometia nem com o princípio da Verdade, nem
mesmo com o do Bem e a sua lógica
concreta, porque eikónica e doxástica, tornava-se num natural obstáculo
às possibilidades reais da contemplação da Sabedoria.
Deste
modo, em Platão, a acção artística não tem qualquer legitimidade no
quadro do saber e do conhecimento, pois qualquer discurso sobre a sua autenticidade
perde naturalmente Verdade. Em
Aristóteles a arte é, ao
contrário, a confluência do
Belo e do Bem “porque o belo consiste na grandeza e na ordem”
(Aristóteles, 1992: VII, 44., 34, 113). Mimésis
e Catarse (cf. idem: 98) são na Tragédia[5],
como “também entre os pintores assim é (...)” (ibidem)
estados que superam os limites humanos que “suscitam o terror e a
piedade”; Imitação, mas
a Imitação do que é
transcendente à condição humana, Imitação
de uma “acção elevada” (ibidem). Se
a poesia em Platão tinha sido
expulsa da Cidade por impedir a
Verdade (cf. Platão, 1988: Livro X), Aristóteles irá dedicar-lhe a Poética, obra em que a
defesa da poesia (séculos mais tarde
eximiamente tratada por Shelley) é assumida como forma excelsa
de conhecimento de tal modo que “(...) a poesia é algo de mais
filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta o particular” (cf. Aristóteles, 1992:
IX, 145 b, 115). Ora
se para Platão parece ser claro a ilegitimidade
das obras de arte no sistema do conhecimento, estando estas condenadas ao
seu universo material e limitado, em Aristóteles elas legitimam-se pelo
facto de decorrerem e concorrerem ao conhecimento
universal sob uma Moral que transforma e reforma constantemente o Belo
em Bem. A
legitimidade da obra de
arte passa na antiguidade pelo crivo da Ética e da Moral, e, enquanto
suposto da grandeza humana que assume a figura do Belo no Bem,
a obra de arte participa da Inexorável
Lei do Amor Universal que tudo rege. 1.1 ab exemplaritate in arte
arte aeterna[6] Mas
se o Logos Grego que regia este
vínculo entre Bem e o Belo era emancipador, imaginante e aberto (de Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Parménides,
Aristóteles) e foi edificando uma razão
poética como um organon, um
utensílio de assunção ao conhecimento e
à verdade, o Cristianismo implicou-o à racionalidade
como ratio
transformando-o numa razão instrumentalizada
à teologia. Todavia, e com o tempo de permeio, poderemos dizer que não fora este procedimento de substituição de um Logos por outro de carácter exclusivamente teológico e não se denotaria tão claramente a secularização da arte clássica que traçando um marco distintivo, tornou clara uma nova valoração estética e axiológica [7]. Subtraído
o que de melhor o Logos Grego
achara em torno da Arte, ou seja, o
princípio de uma
razão poética cuja
lógica virá alguns pares
de séculos futuros a ser motivo
de estudo e aprofundamento, como dão provas as obras de Breitinger e
Bodmer (1727)[8],
a verdade é que o mundo
medieval legitimou a criação artística legitimando-a na proporção
directa da capacidade de representação da Obra de Criação Divina, sendo
esta a razão única da sua Verdade. Claro
é, que também, para os medievais estão no Belo
presentes os conteúdos do Bem, mas este deixou de ser a “acção elevada”, a “transcendência da condição do
homem” e a catártica experiência
da ultrapassagem do humano até ao divino para, ao contrário, se
entender como a experiência esotérica, como a interiorizarão da extensão
do Absoluto. Ora nessa inversão, o elemento humano (como profano) é expurgado, para em
seu lugar ter acontecimento
apenas a iluminação divina. A
obra de arte constrói-se neste movimento de fechamento para a Abertura
[9]
que é mistério, estado de Graça
e preenchimento da Força de
Deus. Não
nos espantará, portanto, que em Plotino a obra de arte adquira esse carácter
místico e possibilite em toda a sua extensão o êxtase e o pensamento místico
(cf. Merlan, 1960). Mas
a perda da presença humana e os custos dessa ausência-presença
evidenciam, paradoxalmente, como a natureza
do objecto artístico se pôde transformar na possibilidade
de ser verdadeiro, legitimado pelo discurso divino que simbolizava. Toda
a Idade Média afirma a obra de arte sob esse paradigma de
interioridade que vezes sem conta é representada de forma
monumental, como dão exemplos o Romântico e o Gótico. Neste
processo, o alargamento de conhecimentos dos métodos e técnicas engrossam
o plano de uma disciplina normativa que se definirá mais tarde como Estética
e esta se vê aqui esboçada
verdade, é que ela não deixa de ser apenas
um meio para atingir um fim, como de resto foram encaradas a maioria
das ciências do quadro dos saberes medieval. E,
se na prática, os valores estéticos medievais são reais e objectivos é
porque entre eles a técnica se articula numa espécie de aliança - aliança
que garantia à Arte imitar tão
fielmente, que por ela fosse crível
a grandeza da Obra de Criação Divina Ora,
da relação da obra de arte com a moral cristã medieval, poder-se-ia
concluir o modo como este se “diviniza”
(cf. Lyotard, 1990) para se “desumanizar”,
pela ausência (notória) de uma reflexão teórica ou ordem filosófica,
essa que naturalmente sempre decorre da autoconsciência
crítica presente na origem da criação artística. E
a verdade é que à excepção de
S. Agostinho, as reflexões estéticas só emergem mais ou menos
sistematizas no Renascimento ou Renascimentos como prefere chamar-lhe
Panofsky (cf. Panofsky, 1975). Com efeito será nas Sumas
Theológicas e não nas Sententiae
que se apresentam as primeiras alusões à criação artística
e os primeiros esboços sobre o Belo. À
semelhança de As Confissões, o Itinerarium
de S. Boaventura conduz uma boa parte das suas reflexões à interpretação
da Beleza como um existente que participa
(em sentido unicamente platónico)
na Grande Obra da Criação de Deus e, em consequência, “a arte
deriva do modelo que existe na arte eterna de Deus” deixando
ver aí os laivos de uma certa transtemporalidade que algumas
correntes contemporâneas defendem (cf.
Abaggano, VII:261). Na teoria agustiniana, continuada por S. Boaventura, a Beleza que emana do acto criado corresponde às coisas “em virtude da sua adaptação a alguma outra coisa enquanto parte de um todo” (cf. Beardsley, Hospers, 1990:38). Em De Ordine (ano de 386) e De Vera Religione (do ano de 390) e em De Musica (entre 388-391) - este último constituindo um tratado em torno da medida - a reflexão sistemática e normativa do fenómeno estético implica também um juízo normativo onde a identificação do Belo deve atender à unidade, ao número, igualdade, proporção e ordem: “A existência de coisas individuais que formam unidades e a possibilidade de as comparar com vista à igualdade ou semelhança, origina a proporção a medida e o número” (cf. idem)[10]. Assim a obra, se espelha o Belo, exprime a Unidade divina onde o Bem (em proporção e harmonia) está naturalmente presente. A arte legitima-se quer na sua função transcendental-divina, quer na sua evidência ética. Mas
será em S. Tomás que a teoria estética melhor se afirma definindo o
espírito estético medieval - a claritas. A Beleza sendo parte da
qualidade da Bondade implica-se a uma forma de percepção Assim
sendo, a distinção da obra de arte como produto
da razão, condicionada por estas características do conhecimento,
deixa ao criador uma curiosa liberdade de acção enquanto agente do facere (arte-bondade). A separação entre agere e facere dão, deste
modo, ao artista (e pela primeira
vez) não só uma certa
imputabilidade moral como uma espécie
de consenso social de protecção. Ética
e Estética, como se acaba de ver, surgem de novo fundidas na confirmação
e legitimação da obra de arte, deixando-nos perceber a presença de uma
matriz identificativa de ordem transtemporal.
Sob
os pressupostos “da luz”,
“da proporção” e
“da perfeição ou integridade”, definem-se normativos de grande inovação,
mas a par destes talvez o mais importante tenha sido o princípio de que a
Beleza não é exclusiva da obra de arte: S. Tomás no Comentário
aos Salmos adiantou com exímia simplicidade
uma das linhas de confrontação das estéticas contemporâneas
“como cada coisa é bela à sua maneira” (cf. XLIV: Comentário a
De divinis nominibus, IV, 5)[13] Para
além disto, em relação às estéticas posteriores torna-se ainda mais
claro como os medievais foram verdadeiramente inovadores. O aprofundamento
filosófico da “estética da proporção” e da “estética da luz”
foi relativamente ao gosto humanista dos primeiros modernos um avanço não
continuado. O hedonismo de expressão
epicurista que se espalhou em
especial pelo sul da Europa, deu lugar a
certo laicisismo artístico que não
disponha de grande suporte teórico. De resto, o reemergir do platonismo no
humanismo confirma o enfraquecimento de um discurso estético normativo, que
se suporta pelo sentido misterioso da
divina beleza. A ideia de
que a arte surpreende pelo efeito da emoção,
do furor estético e da força enigmática que transporta,
reparte-se de Ficcino, Leão Hebreu e Equicola
mas será com Alberti [14]
que a teoria e a história da arte se estruturam sob a tentativa de uma
interpretação da evolução histórica da estética (o medieval, o neoplatónico
e o científico). Um
novo espírito atende à proliferação de Tratados acerca do Belo, bem como
os Tratados das Técnicas de Arte que somados à divulgação e reinterpretação
da Poética de Aristóteles, onde
se salientam Robortello e Castelvetro, assinalam a permanência de um
interesse crescente em torno da construção de uma Estética Normativa cuja
axiomática não excluía a prevalência
da razão instrumental sob o princípio
de que a obra de arte é “a lei da
unidade no tempo do lugar e da acção. De
resto, o classicismo artístico não poderia ser entendido fora deste
discurso de que a Art Poetic de
Boileau (1670) dá melhor exemplo, ao ser
directriz do intelectualismo que no mesmo passo integrava o racionalismo cartesiano e impunha ao artista regras e fórmulas com
as quais este deveria educar e armar a razão (cf. Silva, V. A., 1984). A
partida tomista que
levou à Arte a Razão,
será a mesma que levará
Baumgarten, e na mesma linha
Leibniz, a elevar a Arte a Conhecimento. Tratava-se para o fundador da Estética
de uma cognitio sensitiva perfecta ou seja um conhecimento intermédio
entre a sensação e a razão e, neste percurso também Dubos, Diderot, Home,
Sulzer, Winckelmann (cf. Morais, 1990: II, 288), se encontram no estudo dos
exercícios da razão e das suas categorias, tais como a sensibilidade, o
sentimento, a imaginação e a intuição. Ora,
se a disciplina da Estética
permaneceu ainda assim com um estatuto gnoseológico e ontológico pouco
importante, o facto é, que o seu
discurso criou não apenas os cânones que o legitimaram como teceu em seu
torno uma Ciência Lógica com a qual
se pretendeu a Autenticidade. Podemos
assim ver que se até aqui a Estética se implica à Ética,
neste período as exigências alargaram-se obrigando-a a cruzar-se
com a
Lógica. 1.2. Arte e Liberdade A
definição do Belo como “legalidade sem lei”, como “finalidade sem
fim”, como “prazer desinteressado”,
como o que agrada universalmente, introduz os paradigmas
de um outro conceito Estético, esse que afirmará as estéticas
modernas. Na
verdade a Crítica (cf. Kant,
1977), não só colocou
em evidencia o binómio sujeito-objecto no processo de conhecimento e
de análise do Belo como
lhe definiu um outro princípio legitimador: o juízo
de gosto ou juízo de beleza.
Estes juízos que validam e
podem autenticar o objecto artístico, ao se suportarem pela lógica transcendental
de que o juízo sintético a
priori
é resultado, transportam ainda o
conceito de sublime (matemático ou dinâmico) como supremacia da razão. O discurso que legitima a obra de arte é a partir daqui de caracter subjectivo e transcendental, uma vez que é sobre aqueles juízos que este se realiza e deste modo é justificada a presença de um sujeito transcendental onde as categorias da imaginação e do entendimento se evidenciam. Um
golpe profundo, ainda que ambíguo, desferiu-se sob velha aliança entre Estética
e da Ética. O Estético é a partir daqui entendido como um domínio da razão
que tem consistência em si
mesmo e sendo independente do desejo, do interesse, do conhecimento e da
moralidade, a sua legitimidade confere-se
em primeiro lugar por essas vias do
juízo. Ora a ambiguidade (aparente) pode ver-se resolvida na medida em que tais juízos não se
compreendem senão na vivência plena da harmonia
cósmica das relações da natureza (ainda que destas se possa
extrair, a experiência do Sublime
como Informe ou como o Horrendo
Natural), cujos valores compreendem a “necessidade moral” de um maior
enriquecimento e enobrecimento humanos. Com
este carácter a arte assumiu-se em Schiller, Schlegel e Shelling, não
apenas pela novidade gnoseológica expressa pela
dicotomia entre um sujeito e um objecto, mas também pela importância
que se reveste no plano do aprofundamento das questões gerais da cultura e
da liberdade. Neste papel dialéctico, o séc. XIX promoveu-a como uma ciência
contributiva aos valores da liberdade individual da harmonia e da justiça
sociais. Em
Schiller a arte como jogo Spieltrieb permite
a passagem ao eu superior e o
apelo lúdico à liberdade da imaginação
em conformidade com o entendimento
(ambos entendidos na linha a análitica de Kant) conferem ao objecto artístico
um conhecimento libertador. Nas Briefe
Über die aesthetische Erziebung des Menschen[15],
está presente
esta ideia e ela ao apelar ao impulso lúdico e ao
Ser Superior liberta o
homem do domínio material. A Arte legitima-se agora pelo seu papel
libertador e nesta linha ela obtém os primeiros contornos do que virá a
ser Arte como
“função social”. Nas
lições de Shelling sobre A Filosofia
da Arte[16],
é explicado o papel da arte como meio
através do qual se colocam em acção as diversas “potências”[17]
intrínsecas na identidade Absoluta do Eu. O discurso estético coroa todo o sistema filosófico
de Shelling, que entende a seu modo o que de resto o Logos Grego já havia
integrado - a Razão Poética como forma excelsa de conhecimento. Mas
Hegel compreenderá a relação da Arte com o Absoluto como momento Ideal
conferindo-lhe um lugar de transição até ao Espírito
Absoluto (cf. Hegel, 1970). A obra de arte é para Hegel a
representação sensível da Ideia,
a sua materialização, sendo que a Ideia,
depois de encontrada em si mesma, se anulará no Espirito Absoluto (idem). A arte presentifica esta mediação e no
elaborado sistema filosófico hegeliano ela está destinada no curso
progressivo do desenvolvimento histórico humano a desaparecer em função
da Ideia
Absoluta. (idem). O “fim da arte”, como momento crucial do
movimento da história, recapitula a visão escatológica
do sistema hegeliano onde a
Estética representa um indiscutível
papel e, sem a qual, qualquer desenvolvimento da história
e da liberdade humana falhariam (idem). A
ideia medular do Romantismo
que concebe a arte como expoente máximo da ideia da liberdade humana
(veiculada pela experiência da
Tragédia aristotélica)
encontrando-se de facto desde a filosofia da natureza de Shelling, perpassará
pelas novas formas de criação literária dos poetas ingleses e alemães
entre 1890 e 1910[18]. Assim
a obra de arte passa a compreender a presença de um sujeito criador e
libertador, que no plano emancipador do romantismo “anuncia” a existência de
categorias da razão
puramente subjectivas - a intuição
e a imaginação - agora tidas como eixos pragmáticos da vida no seu pleno sentido. Será
ainda nesse retomar do sentido e no significado da Tragédia grega que Nietzsche,
na linha de Schopenhauer, compreende a obra de arte como a expressão
completa da superação dos limites e da superabundância da vontade do
poder. A arte realiza o impulso do espírito
superior que é naturalmente avesso à ordem social instituída. Arte
e rebeldia alinham-se num discurso novo de legitimação social. Sob os
câmbios estruturais da revolução
industrial, o princípio da função
social da arte como reclamação da vida humana
liberta das duras condições de existência, reproduzem-lhe como
discurso legitimador, um sentido revolucionário e um significado social. Tais
“anunciações”, sob a pressão
do positivismo e do mentalismo cientista crescentes,
concederão ao discurso estético de oitocentos como discurso filosófico,
um carácter de resistência e de
reivindicação da subjectividade e do mistério humanos deixados à margem
do quadro estreito da taxonomia contiana. A verdade é que grande parte da
contribuição filosófica e metafísica destes anos compreendeu a
Estética como ramo principal dos seus sistemas. As
linhas que do intuicionismo de Bergson (cf. Bergson, 1988)
se cruzam em pensadores como Leonardo Coimbra, António Machado (e já
anteriormente em Antero de Quental), Miguel
de Unamuno, Teixeira de
Pascoaes, José Marinho e, tantos outros, apontam na sua maioria
para a importância do pensamento subjectivo, para o valor da imaginação
e da intuição no plano do que se poderá entender como
o logos poético[19]. De
outro modo, em Heidegger a
perspectivação ontológica d' A
Origem da Arte coloca em acção o problema do Ser (Sein)
e se “arte é colocar na obra a verdade”, é da verdade do Ser
que se trata e não de qualquer outra verdade (cf. Heidegger, 1978:117). A
inversão do vector ontológico consolida-se numa procura do sentido e
significado do Ser o qual encontra na poesia a sua “habitação”;
e se nesta inversão é a dimensão existencial humana que é
deixada, a resposta do(s) Existencialismo(s), ainda que breve, não deixou de se fazer sentir. Ora
o movimento da Arte pela Arte compreenderá de outro modo o papel da
arte, se cumprida no estóico afastamento do artista e na declaração
de independência artística, em relação ao contexto social, político
cultural -
talvez um retorno a Kant que já a havia definida como um campo autónomo. 2. A Fonte de Duchamp A
exposição de um urinol, trazido a público por Duchamp em 1917, na
Society of Independent Artist e a que deu o nome de A Fonte,
abre definitivamente uma ruptura no imenso painel teorético construído
sobre a obra de arte. Terá Hegel tido Razão? Poderá a Bondade
de S. Tomás tornar Belo um
urinol? As dificuldades crescem quando se pretende legitimar um urinol como uma obra de arte. Mas ainda assim, discursos de legitimação surgem e, não sem fundamentos. Todavia
saberemos que estes poderão ser apenas compreendidos ao nível da história
da própria Estética onde são
possíveis juízos acerca das
razões operativas do conceito de Kunstwollen
“de querer artístico” que "Panofsky
vai buscar a Riegl" (cf. Panofsky,1975). Legitimidade
e Autenticidade propõem hoje, à
ciência estética uma Aporia que contém sérias dificuldades. Os
contributos vindos das diferentes ciências sociais humanas tem lançado
um universo de hipóteses concorrentes e divergentes. Depois do insucesso
da Teoria da Indefinibilidade
da Arte, de resto inspirada nas Investigações
Filosóficas de Wittgenstein e representada por autores como De Wwit,
Parker e W. Kennick, poderíamos dizer que convivem na actualidade teorias Essencialistas
(Tatarkievskiwcz, Morawski) com teorias Estético-psicológicas
(como as C. Bell), Teorias
Institucionais (como as Artur Danto e George Dickie) com a Teoria
da Função Simbólica da Arte
(como as N. Goodman)[20]
(cf. d'Orey, 1990:67-93). Verdade, é que ainda assim, todas as teorias contemporâneas ora referenciadas levam de arrasto eixos e axiomas que se mantiveram presentes na continuidade histórica do pensamento sobre a arte. E se o surto teórico confunde, se o discurso que pode legitimar uma obra de arte se remete a uma multiplicidade de discursos oriundos dos mais variados campos do conhecimento e da acção humanas, resta-nos a impressão que na actualidade o único discurso legitimador é tão somente aquele que em boa verdade nada pode querer legitimar a não ser que tenha sob mira a perspectiva wolfiiniana de um filosofia natural da arte[21].
Notas [1]
Conviria aqui recordar que ainda que as dissidências entre mestre e
discípulo tenham sido óbvias e historicamente provadas o facto é que
toda a Fenomenologia de Heidegger tem a sua estrutura na Ideia
da Fenomenologia de Husserl. O carácter transcendental-filosófico do
conhecimento fenomenológico exposto nas Ideen
de Hussserl, é assim nos
Problemas
Fundamentais da Fenomenologia
de Heidegger perspectivado na relação dialéctica entre a
esfera ontológica e a esfera do
existencial. Veja-se de Husserl,
Ideen zur reinen Phänomenologie
und phänomenologischen Philosophie –
I, II (Husserliana – III, IV e V), M. Nijhoff, Haia1950-52
e de Heidegger: Les Problémes
Fondamentaux de la Phénomenologie. Paris,
1985, Gallimard.
[2]
Sobre o conceito de Estética – Normal consulte-se o
trabalho da autora de "A Obra de Manuel Casimiro e Algumas
Proposições Acerca de uma Estética-Normal" in Revista Colóquios
Artes, nº109, ed. Fundação Calosute Gulbenkian, Lisboa, 1996.
Neste artigo é feita uma reflexão sobre a natureza da obra de
arte tendo esta sido compreendida na sua valoração transtemporal
e continuista à imagem e semelhança da teoria Khuniana acerca
dos processos de produção científica. [3] Em Ser e Tempo Heidegger explicita o conceito de Historizität bem como o de temporalidade através da analítica existencial do Dasein. Assim a “temporalidade deve, na verdade, confirmar-se em todas as estruturas essenciais da presença” (cf, Parte II, p.127) e de outro modo “a História factual (Historie) ou mais precisamente a factualidade historiográfica (Historizität) só é possível como modo de ser da presença (...)” (cf. Parte I, p.48). [4]
A este propósito veja-se as definições
de: intentio auctoris, intento operis, intentio lectoris, na obra
de Umberto Eco Os Limites da Interpretação.
O estudo centra-se nas possibilidades da interpretação à luz
da Semiótica da Recepção. [5] Sobre a importância da Tragédia nas sociedades contemporâneas consulte-se o recente trabalho de Cerejo, que na linha da interpretação do pensamento de Miguel de Unamuno reconhece nesta as formas de expressão e representação da a dimensão humana no plano da sua existencialidade e temporalidade. Veja-se As Máscaras de lo Trágico, de Pedro Cerezo Galán, Editorial Trotta, 1996, Madrid. [6] Tradução: A Arte deriva do modelo que existe na arte eterna de Deus. [7] Sabendo-se de tal evidência resta apenas recordar que esta nova valoração ética da ética de Nicomaco pouco ou nada levava como do mesmo modo o aristotelismo que se divulgava adaptado de Aristóteles pouco arrastava. [8]
A questão de um logos poético tem vindo a ser exemplarmente estudada na actualidade
por autores ibéricos. As obras de Maria Zambrano, como Senderos
de 1989 e Filosofia y Poesia bem
como todo o pensamento de António Machado pode ser associado aos
pensamentos portugueses de Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes,
José Marinho e tantos outros de origem ibérica. [9] Convém ter presente que o sentido de Abertura expresso pela mentalidade medieval contém significado ontológico sendo na sua verdadeira forma onto-religioso e ao conter esse sentido ontológico ela não se afastaria do que em Heidegger se entende pela Erschlossenheit que sem a formula religiosa ou teológica compreende o momento de abertura ao Ser no programa e no projecto de um ser integral vislumbrado nos Beitrage zur Philosophie von Ereignis e editado apenas após sua morte em 1989. [10]
Na verdade uma das características da teoria agustiniana
centra-se justamente na importância atribuída à percepção da Beleza
que se implica ao juízo normativo afinal regido por categorias
da Unidade. Todavia esta percepção do Belo e da Perfeição não sendo
meramente percebida há-de levar
dentro daquele que percebe,
o espectador, um conceito de ordem ideal que é dado “uma
iluminação divina”. Daqui decorre que o juízo sobre a beleza não
é relativo se assim se dá. [11]
Summa Theologica, I, q. 39, art.8. [12]
Summa Theologica, II-II, q. 145, art.2; q. 180, art.2. [13] Será desta partida teórica que poderíamos tecer comparação com as mais recentes teorias como as que defendem apenas a Função Simbólica do objecto artístico. [14]
Veja-se De Statua, 1434; De pictura, 1435, De Re Aedificatoria,1452: o
medieval, o neoplatónico e o científico. [15] Cartas sobre a educação estética do homem (1793-1795). [16] Estas lições dadas entre os anos 1803-1803 apenas se viram publicadas em 1859. [17]
Relativamente a esta matéria deve consultar-se a obra: Sobre a relação entre
artes plásticas e a natureza. [18] Veja-se como esta ideia de arte concebida como expressão das emoções e dos sentimentos mais fundos se apresenta em textos como o Prefácio de Wordsworth (1800), Lyrical Ballads, em Defense of Poetry de Shelley (1819), ou mesmo de Mills (1833), “What is Poetry?” [20] Convém ter presente que todo o século XX registou uma franca corrida oriunda das diferentes ciências sociais à interpretação do fenómeno Artístico. [21] A compreensão da Filosofia Natural da Arte que aqui se aponta prende-se com as investigações e ideias de Heinrich Wolffin reunidas em Conceptos fundamentales en la historia del Arte. ![]() | |||||||
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