![]() Um retrato escultórico de D. Catarina de Áustria como figura de legitimaçãoPedro Flor Universidade Aberta
Num colóquio subordinado ao tema “Discursos de Legitimação” justifica-se a participação da área de estudos da História da Arte pois, quase sempre, a encomenda e o acto criador, subjacentes a uma obra de arte, encontram-se intimamente relacionados com o discurso legitimatório. De entre os géneros artísticos conhecidos, decidimos abordar o Retrato que, em nosso opinião, não tem merecido o cuidado devido por parte dos investigadores[1]. A escassez de estudos de carácter monográfico dedicados ao domínio da arte do retrato, bem como os benefícios que resultam do facto de esta matéria específica ser aqui tratada são motivos que permitem a natureza deste trabalho e a sua inserção no âmbito temático do colóquio. O género artístico do Retrato tem sido considerado unanimemente como modelo inequívoco de discurso de legitimação[2]. Com efeito, e em sentido geral, se observarmos com atenção os variados exemplos de retratos que chegaram até nós, verificamos que, na maior parte dos casos, os mesmos foram encomendados, tendo em vista um discurso metafórico de afirmação de poder e de glorificação pessoal. Por isso, procuraremos através da análise de um exemplo concreto da arte do Renascimento em Portugal demonstrar como um retrato se pode transformar numa narrativa legitimatória. Ao longo da sua vida, a Rainha D. Catarina de Áustria (1507-1578), mulher de D. João III (1502-1557), foi uma coleccionadora considerável actividade de que resultou um conjunto variado de peças valiosíssimas (retratos, mobílias, tapeçarias, pratas, jóias, livros, entre outros espécimes) e de objectos exóticos provenientes das diversas partes do Império do Oriente como, por exemplo, tecidos, panos, porcelanas, marfins, pedras preciosas e outras raridades[3]. Para o desenvolvimento do gosto pela arte do retrato em redor da Rainha, muito contribuíram a circulação do manuscrito de Francisco de Holanda Do Tirar Polo Natural (1549) e a estadia na corte do pintor flamengo Anthonis Mor (1552) com a incumbência de retratar a família real portuguesa[4]. No entanto, o apreço demonstrado pelas artes não se expressou, em exclusivo, nessa extraordinária colecção pessoal, uma das mais ricas do tempo. Com efeito, em torno de D. Catarina gravitou um número considerável de nomes importantes da cena artística portuguesa do século XVI. Referimo-nos entre outros aos arquitectos Diogo de Torralva e Jerónimo de Ruão, aos pintores Francisco de Holanda, Anthonis Mor, Sánchez Coello, Cristóvão de Morais, Lourenço de Salzedo, e aos escultores Diogo de Zarza, Filipe de Vries e Nicolau Chanterene. Para o trabalho que ora desenvolvemos, interessa analisar e entender, em particular, os laços mecenáticos que ligaram a rainha D. Catarina a este último escultor francês. A estadia entre nós de Mestre Nicolau prolongou-se entre os anos de 1517 e 1551, tendo ele trabalhado nesse período para uma vasta clientela, na qual se contavam as mais destacadas figuras laicas e eclesiásticas de Portugal de Quinhentos. Após análise do seu percurso artístico, verificamos que, desde a sua nomeação como imaginário régio, em 1519, por D. Manuel (1469-1521), até ser elevado ao cargo honorário de arauto por D. João III em 1535, Nicolau Chanterene recebeu várias benesses da coroa que lhe permitiram obter um estatuto sócio-económico de destaque, e bem diferente dos escultores contemporâneos. Esses largos benefícios concedidos pelos monarcas e personalidades da corte encontram justificação, quer na qualidade plástica, quer na actualidade estética patentes na maior parte das obras que realizou. Estamos, por exemplo, a aludir às importantes empreitadas escultóricas por ele efectuadas nos mosteiros jerónimos de Santa Maria de Belém, em Lisboa, e Nossa Senhora da Pena, em Sintra onde o patrocínio régio foi mais visível. No primeiro caso, para o portal axial da igreja conventual dos Jerónimos em Lisboa, Chanterene executou em 1517 um conjunto de estátuas do qual se destacam retratados e tirados polo natural, no dizer de Damião de Góis, D. Manuel e sua segunda mulher D. Maria (1482-1517) que custearam tal empreitada. No segundo caso, que vamos analisar com maior pormenor, Nicolau Chanterene elabora um magnífico retábulo de alabastro para o altar-mor da igreja do mosteiro de Nossa Senhora da Pena em Sintra entre 1528 e 1534 a expensas de D. João III e D. Catarina de Áustria. Para tal empreitada, o Rei D. João III autoriza a deslocação de Chanterene à vizinha Espanha, para a aquisição do material necessário à execução dos trabalhos. Chegado a Portugal em 1528, o nosso escultor inicia o plano retabular, com vista à decoração da capela-mor da igreja de Nossa Senhora da Pena [5]. Estaria eventualmente previsto no início dedicar o referido retábulo ao nascimento da princesa D. Maria (1527), futura esposa de Filipe II de Espanha[6]. Todavia, em nossa opinião, o projecto retabular inicial terá sido alterado, devido ao prolongamento dos trabalhos por mais alguns anos, e ao falecimento súbito dos restantes filhos de D. João III e de D. Catarina, nascidos entre 1525, data do seu casamento, e 1531, data do nascimento do príncipe D. Manuel o que encheu de esperanças a corte que o jurou como herdeiro do trono quatro anos mais tarde em Évora. Deste modo, decidiu-se que o retábulo deveria tornar-se numa obra de agradecimento à Virgem pelo parto abençoado de D. Manuel, futuro Rei de Portugal conforme se pode ler em inscrição ainda hoje preservada bem como em data gravada no sacrário do retábulo (1531). Além desta magnífica composição retabular, D. João III e D. Catarina encomendam a Gil Vicente um auto para assinalar festivamente o nascimento de D. Manuel – o Auto da Lusitânia - representado somente em 1532 na corte de Lisboa[7] e onde a serra de Sintra aparece por coincidência ou não diversas vezes referenciada. Importa destacar que D. Catarina financiou grande parte das obras do retábulo hieronimita e transferiu para o efeito parte das rendas do Hospital e Gafaria de Sintra[8]. Este facto comprova não só o interesse da Rainha em ver terminada a obra mas também o empenho pessoal colocado no decorrer da empreitada, numa primeira fase impulsionada ainda por seu marido e, na fase derradeira, por ela própria. O apoio financeiro, prestado por D. Catarina à Ordem de São Jerónimo, surge na sequência do que haviam feito os monarcas seus antecessores e integra-se numa política de afirmação da dinastia Avis/Beja que encontra o seu auge no patrocínio das obras de engrandecimento da capela-mor do Mosteiro de Santa Maria de Belém entre 1565 e 1572, transformada em verdadeiro panteão régio[9]. Interessada também na exaltação da sua imagem de monarca poderosa e magnificente, na Europa de Quinhentos, onde a casa real preponderante era justamente a de Habsburgo, D. Catarina de Áustria serve-se, assim, da encomenda e patrocínio de obras de arte para essa promoção pessoal e dinástica. À luz destes factos, poderemos, então, explicar a encomenda do retábulo da Pena em Sintra e a atenção dispensada pela Rainha ao decorrer dos trabalhos. Como mais adiante veremos, D. Catarina também deixará nesta obra a sua marca individual, provavelmente por conselho do ideólogo espiritual deste arrojado projecto, os jerónimos Frei António de Beja ou Frei Brás de Braga, como meio de perpetuar o seu nome e o agradecimento à Virgem pelo nascimento do filho[10]. Se observarmos atentamente toda a composição retabular, verificamos que nela se destacam dois grupos de figuras distintos: o Cristo sustentado por três anjos, inseridos numa edícula central e, sobre esta, uma Majestade[11] ou uma Nossa Senhora com um Menino ao colo. Ao traçar o plano inicial, Mestre Nicolau colocou estes dois agrupamentos escultóricos em destaque, a fim de realçar o centro de toda a estrutura do retábulo, uma vez que para aí iriam convergir os demais episódios narrados. Da Majestade começam a construir-se duas cenas essenciais para a compreensão da orgânica interna e iconográfica do retábulo: a Anunciação do lado esquerdo e a Adoração dos Magos do lado direito. Por ora, analisemos com mais pormenor o grupo central da Virgem com o Menino. Esta peça de escultura, bem reveladora das capacidades técnicas de Chanterene, encontra-se representada num trono, de espaldar semicircular, encimado por uma vieira que simboliza o Espírito Santo. A figura feminina segura na mão direita um livro em alusão à Sabedoria, tornando-a assim numa Mater Sapientiae. Por sua vez, a mão esquerda ampara um menino irrequieto, que, ao voltar-se, se mostra indiferente ao comportamento de sua Mãe. De notar a decoração do trono onde a figura se encontra sentada. Assim, no remate semicircular, verificamos a presença de flores e frutos, símbolos de pureza e de fertilidade que, conjugados, aludem à natureza de Nossa Senhora e à importância que esta desempenha no acto da criação humana. Além da presença simbólica destes elementos, surgem outros, nos braços e nos pés do trono. Nos primeiros, encontram-se representados grifos, figuras que nos remetem para a dupla natureza de Cristo; nos segundos, estão representadas as Três Graças (relacionadas na Mitologia Clássica com Afrodite e Vénus) que invocam a Castidade, a Beleza e o Amor, valores atribuíveis à Virgem Maria. Após uma leitura iconográfica sumária deste conjunto escultórico, verificamos que todos os atributos nele presentes nos remetem para o carácter divino, imaculado e poderoso da Virgem e de seu filho Jesus[12]. Todavia, existem outros elementos assinaláveis na figura feminina que nos permitem tirar outras ilações acerca da sua identidade. Com efeito, se observarmos com atenção as restantes representações da Virgem no retábulo (Anunciação[13], Adoração dos Pastores, Apresentação do Menino no Templo e Fuga para o Egipto), verificamos que todas elas apresentam o mesmo tipo de feições idealizadas e marcadas suavemente. Por seu turno, a Majestade patenteia no seu rosto, traços bem marcados e individualizados, como sejam a testa alta e descoberta, os olhos rasgados, algo amendoados, e de pálpebras salientes, e queixo redondo. Refiram-se igualmente os cabelos enrolados e envoltos num toucado perlado e coberto por um véu suave e uma trança comprida que lhe cai pelas costas. Este modo de apresentar o cabelo em trança constituía um hábito frequente nas cortes europeias da época, revelador da influência do gosto napolitano, e foi introduzido entre nós, segundo pensamos, por D. Maria, filha dos Reis Católicos, mulher de D. Manuel e, portanto, sogra de D. Catarina[14]. Além destes evidentes sinais de individualização, saliente-se também o traje esmerado de mangas tufadas que enverga, unido a um corpete por um requintado alfinete de joalharia. Ao contrário das outras figurações da Virgem ao longo do retábulo, o modo de apresentar o cabelo e de trajar desta figura está de acordo com os padrões da moda renascentista, época na qual a escultura foi efectuada[15]. Em nossa opinião, os elementos anteriormente apresentados permitem colocar a hipótese de a escultura em causa se tratar de um retrato de D. Catarina, personificado na Virgem Maria. Para encontrar as primeiras justificações para a nossa conjectura, é preciso recordar o especial empenho da monarca em financiar e ver terminada a obra, e a protecção prestada ao escultor Nicolau Chanterene, autor, no passado, de outros retratos régios, e que continuará a trabalhar para si durante mais alguns anos. As marcas de verismo da figura atrás enunciadas como, por exemplo, a fisionomia pormenorizada e diferenciada das restantes figuras femininas do retábulo, o penteado e o toucado ostentados, o traje envergado e os adornos são aspectos que concorrem para a nossa suposição. Uma referência especial para a pose da figura que, pelo facto de estar sentada, corresponde a um tipo composicional visualmente apropriado à índole virtuosa da retratada que se quer como exemplo ideal de dama e esposa perfeita, de acordo com os modelos do tempo. O aprumo da figura estará eventualmente ligado ao paralelismo que se pode estabelecer com a iconografia mariana e a um simbolismo inerente, em geral, associado à Virgem [16]. De certo modo, como nos diz Annemarie Jordan, esta imagem de mulher representada no retábulo encarna um exemplo de beleza e feminilidade, preconizado na pintura, pela primeira vez, por Rafael que tornaria o retrato de Isabel de Aragão (1518) o modelo feminino por excelência na retratística de corte no Renascimento[17]. Para lá dos elementos enunciados - quanto a nós bastantes para confirmarem a hipótese apresentada - existem outros que reforçam o nosso posicionamento face à representação de D. Catarina como Virgem Maria. É Gil Vicente que no início do seu auto Frágua de Amor (1524), composto por ocasião do casamento entre D. João III e D. Catarina, traça o primeiro paralelismo entre a monarca e Maria[18]. Com efeito, para além de a designar Nossa Senhora, o dramaturgo informa-nos que o castelo de quatro torres, descrito na introdução da peça, se refere metaforicamente a D. Catarina. Sabemos também que toda a simbologia inerente à representação de um castelo e de suas torres pode rapidamente associar-se com o carácter divino, casto e virtuoso da Virgem. De resto, o castelo e as suas torres constituem seus atributos iconográficos usuais. Deste modo, parece-nos que a imagem metafórica de D. Catarina como Nossa Senhora ficou elogiosamente marcada na memória colectiva da sociedade do tempo para a qual contribuiu esta representação vicentina. Lembremo-nos também dos desenhos realizados por Pieter van Aelst e por Barend van Orley[19] para um dos vitrais da capela do Santíssimo Sacramento da Catedral de Saint Michel de Bruxelas, patrocinado pela coroa portuguesa entre 1537 e 1542[20]. Esses desenhos representam o casal D. João III e D. Catarina de Áustria de joelhos, em oração, acompanhados pelos seus Santos patronos, São João Baptista e Santa Catarina respectivamente. Ao observar com atenção a figura da rainha, verificamos que, para além da aparência física se assemelhar em muito com a da Majestade da Pena, o traje envergado e o penteado apresentado, mais do que sinais do mesmo gosto e da mesma moda, são em tudo análogos à da nossa escultura. Um outro pormenor interessante é o da jóia que adorna o corpete de D. Catarina, no vitral da capela do Santíssimo Sacramento. De facto, a extraordinária semelhança existente entre este objecto de uso pessoal e o ostentado na escultura sintrense reforça o que temos vindo a dizer a respeito da identidade da nossa peça. Acrescente-se também que D. Catarina, pelos anos de 1528/1534, tinha entre 21 e 26 anos de idade, precisamente aquela que aparenta ter a imagem de Nossa Senhora no retábulo da Pena. Além das fortes semelhanças iconográficas que se podem reconhecer entre as duas figuras, existe uma outra de carácter iconológico que apenas corrobora uma vez mais a nossa hipótese. Ao dar à luz um filho varão, D. Catarina pôs-lhe o nome de Manuel (ou Emanuel) que seria o sucessor natural de D. João III. O significado do nome ‘Manuel’, que em hebraico significa Deus Connosco, prende-se também com a Sua vocação profetizada visto que, na Sagrada Escritura, Isaías (7, 10-14) anuncia como próxima a libertação de Jerusalém pela mão de um Homem que nasceria de uma virgem[21]. Podemos de algum modo afirmar que a monarca identificou-se com Maria no papel de Mãe de um filho salvador e predestinado fazendo, por isso, representar-se como Mãe de Cristo e dedicando-lhe o retábulo como voto de agradecimento. Ao contrário do que se possa imaginar, este tipo de representações alegóricas era comum ao tempo e constitui porventura uma subcategoria dentro do género artístico do Retrato. Com efeito, podemos afirmar que o retrato metafórico verifica-se sempre que o retratado perde a identidade própria e assume outra, ainda que adopte as virtudes e os defeitos da personalidade que encarna. Cabe-nos também salientar que esta visão dualista da realidade imanente e transcendente encontra plena explicação à luz dos princípios estéticos de carácter neoplatónico tão em voga ao tempo. A viagem de Francisco de Holanda efectuada a Itália (1538-1540) é vulgarmente apontada como uma das principais responsáveis pela introdução do neoplatonismo nas artes através da literatura tratadística por ele legada[22]. Todavia, o gosto e o estudo do Neoplatonismo em Portugal são anteriores a tal viagem transalpina[23]. Com efeito, o conhecimento entre nós da obra do humanista Angelo Poliziano (1454-1494), que estudou em Florença juntamente com Ficino e Landino, remonta aos finais do século XV. Por outro lado, a acção mecenática de D. Miguel da Silva, a quem o diplomata Baldassare Castiglione (1478-1529) dedicou o célebre Il Cortegiano, e a rica biblioteca episcopal trazida para o nosso País em 1525, plena de obras de escritores e poetas neoplatónicos da órbita de Marsilio Ficino (1433-1499), bem como a influência dos escritos de Pico della Mirandola (1463-1494) manifestada em Garcia de Resende são outros indicadores da afeição por essa corrente estética e filosófica que começava a desenvolver-se entre nós, pelo menos numa elite culta e restrita que rondava a corte joanina[24]. Um dos aspectos mais marcantes do pensamento de raiz ficiniana, e que nos interessa realçar, é o ênfase colocado na unidade inerente da religião cristã e da filosofia platónica. Assim, segundo esta faceta, o platonismo deveria ser entendido como síntese de todo o pensamento religioso da Antiguidade Clássica com o próprio Cristianismo que, por essa razão, se tornava a religião mais elevada e verdadeira possível. Todavia, o regresso ao platonismo pelos humanistas do Quattrocento não deverá ser entendido como um simples retorno ao paganismo mas sim como uma profunda renovação do Cristianismo. Importa agora recordar que, além da representação como Virgem Maria no retábulo da Pena em Sintra, D. Catarina fez-se retratar como Juno (divindade romana que corresponde à Deusa Hera no imaginário mitológico grego e símbolo da esposa fiel) numa tapeçaria de grandes dimensões, em conjunto com o seu marido D. João III que, por seu turno, personificou o Deus Júpiter[25]. Como é sabido, a Deusa Juno, na maioria das vezes coroada e sentada num trono, relaciona-se intimamente com o culto da fertilidade e com a protecção das mulheres e, em especial, com o nascimento dos seus filhos[26]. Se atendermos ao facto, anteriormente mencionado, de que a sucessão ao trono na viragem da década de trinta constituía ainda um problema a resolver no seio da coroa portuguesa, percebemos melhor a razão pela qual D. Catarina escolheu encarnar a deusa Juno para figurar num retrato. O duplo sentido atribuído pela monarca às figuras eleitas, em simultâneo ligadas à imagem da Deusa pagã Juno e à figura divina da Virgem Maria, explica-se deste modo à luz do pensamento de Ficino que relaciona intrinsecamente a filosofia platónica e a religião cristã. D. Catarina de Áustria procurou seguir o exemplo do seu sogro D. Manuel no que respeita a uma política de afirmação da dinastia Avis/Beja através do mecenato artístico empreendido. Além disso, e a partir da década de 50 do século XVI, a monarca procurou igualmente enaltecer a casa real europeia de Habsburgo (a que pertencia por laços sanguíneos) e que dominava os principais tronos da Europa. Para tal, a monarca utiliza um discurso retórico e artístico, apoiado por um conjunto de artistas nacionais e estrangeiros que satisfaziam as suas exigências. Desde cedo, numa época em que a temática religiosa continuava a dominar as encomendas de doadores e mecenas, a Rainha D. Catarina revelou particular gosto pela arte do retrato, não só por coleccionar alguns exemplares desse género artístico[27] mas também por financiar a encomenda de outros a fim de adornar e enriquecer o seu espólio. A verdadeira identidade da escultura sintrense perdeu-se nos tempos, pois o período contra-reformista que se viveu em Portugal, a partir de meados do século XVI, e o rigor imposto pelas disposições tridentinas na representação das imagens sagradas assim o obrigaram. Todavia, uma leitura atenta dos elementos iconográficos que chegaram até nós e uma análise iconológica profunda permitem-nos hoje reconstituir o pensamento e a vera intenção de D. Catarina em encomendar um importante retábulo e nele fazer representar-se. Em síntese, ao encomendar um grandioso retábulo para a igreja conventual da Pena em Sintra, D. Catarina tinha em vista um objectivo. Procurava através dele agradecer a Nossa Senhora o nascimento bem sucedido de seu filho herdeiro D. Manuel. O carácter messiânico de que este nascimento se revestiu fez com que a Rainha se identificasse com o papel desempenhado pela Mãe de Jesus e, por conseguinte, se fizesse retratar como Virgem Maria. O modo de apresentar esta escultura revela evidentes afinidades com a moda do tempo e com os adornos pessoais de D. Catarina, como se pode verificar através do cotejo com outros retratos coevos. Os elementos decorativos do trono onde se encontra sentada, bem como a escolha pela Rainha da divindade clássica Juno, para se retratar noutra ocasião, são elementos de dualidade simbólica que devem ser entendidos segundo os princípios estéticos neoplatónicos. Ao longo do seu reinado, D. Catarina de Áustria servir-se-á da arte do Retrato como discurso de legitimação da glória e poderio pessoais e dinásticos para estabelecer e fixar a sua imagem ao utilizar um conjunto de sinais metafóricos plenos de simbologia e de forte significado iconológico.
Notas [1] Apesar de ser terem desenvolvido os estudos de História da Arte do Renascimento entre nós na última década, o estudo da arte do Retrato tem sido relegado para segundo plano salvo os importantes contributos nesta matéria de José Augusto França, Annemarie Jordan e Joaquim de Oliveira Caetano presentes na bibliografia final. [2] Cf. entre outros com os trabalhos de Lorne Campbell, Galienne e Pierre Francastel, John Pope-Hennessy, Annemarie Jordan e Paola Tinagli referenciados na bibliografia final. [3] Sobre a colecção particular de D. Catarina de Áustria consulte-se Annemarie JORDAN, “A Galeria Dinástica da Rainha no Paço de Lisboa”, in O Retrato de Corte em Portugal: o legado de Antonio Moro, Lisboa, Quetzal Editores, 1994, p.79-103. [4] Sobre a estadia deste pintor flamengo entre nós veja-se Idem, “1552: António Moro e Alonso Sánchez Coello na corte de Lisboa”, in Ibidem, p.31-78. [5] Os autores consultados apontam os anos de 1529 e 1532 como prováveis para a empreitada do retábulo da Pena (mais recentemente Vítor SERRÃO, História da Arte em Portugal (O Renascimento e o Maneirismo) Lisboa, Ed. Presença, 2002, p.143). Todavia, em nosso entender, os trabalhos de Chanterene em Sintra prolongaram-se por mais dois anos (1534) como se depreende da leitura de documentos coevos. Sobre esta problemática veja-se Pedro FLOR, O Túmulo de D. João de Noronha e de D. Isabel de Sousa na Igreja de Santa Maria de Óbidos, Lisboa, Ed. Colibri, 2002, p.112-114. Contamos em breve apresentar um estudo aprofundado sobre esta magnífica composição retabular. Sobre a actividade de Nicolau Chanterene vejam-se os trabalhos de Rafael Moreira, Pedro Dias, Fernando Grilo e Pedro Flor. Sobre a escultura do Renascimento em Sintra, consulte-se entre outros o trabalho de Vítor SERRÃO, “O baixo-relevo renascentista da Igreja Matriz de Rio de Mouro”, in Sintria I – II, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1982-83, p.561-618. e também o de Rafael MOREIRA, "Sintra Renascentista", in Património Mundial - Sintra, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1995, p.20-21. [6] Cf. Fernando GRILO, Op. Cit., 2001. [7] Sobre este auto vicentino consulte-se por exemplo Paul TEYSSIER, “Interpretação do Auto da Lusitânia” in Temas Vicentinos. Actas do Colóquio em torno da obra de Gil Vicente, Lisboa, ICALP, 1992, p.175-185. [8] Cf. Carlos Manique SILVA, “A propósito do retábulo do Mosteiro de Nossa Senhora da Pena”, in Estudos Históricos sobre Sintra, Sintra, Santa Casa da Misericórdia de Sintra, 2000, p.57-65. [9] Cf. Vítor SERRÃO, “O retábulo-mor do Mosteiro dos Jerónimos (1570-1572) pelo pintor Lourenço Salzedo”, in Historia e Restauro da Pintura do Retábulo-Mor do Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, IPPAR, col. Cadernos, 2ª série, 2000, p.17-77. [10] Sobre a acção espiritual destes dois frades jerónimos consulte-se por exemplo Cândido dos SANTOS, Os Jerónimos em Portugal – das origens aos fins do século XVII, Lisboa, INIC, Centro de História da Universidade do Porto, 1980. [11] Imagem 1.
[12] Para a análise iconográfica da Majestade consultou-se a bibliografia da especialidade indicada no final do trabalho. [13] Imagem 2.
[14] Sobre a moda neste período veja-se por exemplo Carmen BERNIS, Trajes y modas en la España de los Reyes Católicos, Madrid, 1962. [15] Alguns traços de individualismo nesta figura já foram notados por Alexandre Pais e Ana Cristina Silva em O Retábulo da Pena em Sintra, Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, trabalho inédito policopiado, 1989. Todavia, a leitura agora apresentada dos elementos presentes na escultura são da nossa inteira responsabilidade. [16] Cf. Annemarie JORDAN, Ibidem, p.63-68. [17] Idem, Ibidem, p.66-68. [18] Cf. Paul TEYSSIER, Gil Vicente: o autor e a obra, Lisboa, ICAPL, 1982 e AAVV, Gil Vicente. Todas as Obras, Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses, nº 7, CNCDP, 2001 (cd-rom). [19] Imagem 3. D. Catarina de Áustria e D. João III com Santa Catarina e São João Baptista, Desenho, Museu do Hermitage, São Petersburgo, nº inv. 5850, publ. Annemarie JORDAN, Retrato de Corte em Portugal, Lisboa, Quetzal Editores, 1994, p.141.
[20] Sobre o vitral da Capela do Santíssimo Sacramento em Saint-Michel de Bruxelas consulte-se por exemplo Portugal et Flandres. Visions de l’Europe (1550-1680), Bruxelles, Europalia 91, 1991, p.126-128, cat. 1, Annemarie JORDAN, Ibidem, p.141-142. [21] Acerca do simbolismo do nome ‘Manuel’ e as suas implicações na arte veja-se Ana Maria ALVES, Iconologia do Poder Real no Período Manuelino, Lisboa, INCM, col. Temas Portugueses, 1984 e também Paulo PEREIRA, A Obra Silvestre e a Esfera do Rei, Coimbra, Imp. da Universidade, 1990, e ainda Idem, “A simbólica manuelina. Razão, celebração, segredo”, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo PEREIRA), II vol., Lisboa, Círculo de Leitores, col. Temas e Debates, 1995, p.115-155. [22] Sobre Francisco de Holanda consultem-se os vários trabalhos a ele dedicados por Rafael Moreira, Sylvie Deswarte e José Stichini Vilela presentes na bibliografia final. [23] Cf. entre outros autores Sylvie DESWARTE-ROSA, “L’essence et les sens Francisco de Holanda”, in Portugal et Flandres...., p.159-171. [24] Sobre a recepção do neoplatonismo em Portugal veja-se por exemplo José V. de Pina MARTINS, “Pico della Mirandola e o humanismo italiano nas origens do humanismo português”, in Estudos Italianos em Portugal, nº 23, 1964, p.107-146, e Idem, Cultura Italiana, Lisboa, Editorial Verbo, col. Presenças, 1971, Sylvie DESWARTE-ROSA, Ibidem e ainda José Stichini VILELA, Francisco de Holanda – Vida pensamento e obra, Lisboa, ICALP, Biblioteca Breve, 1982. [25] Segundo Annemarie Jordan em trabalho anteriormente citado, esta tapeçaria foi levada para a Espanha aquando da viagem de D. Maria para o casamento com Filipe II. Actualmente, a peça faz parte das colecções do Palácio e Mosteiro do Escorial. [26] Sobre a simbologia de Juno consultaram-se as obras da especialidade presentes na bibliografia final. [27] Sobre a colecção particular de D. Catarina veja-se Annemarie JORDAN, Portuguese Royal Colections 1505-1580, Tese de Mestrado, George Washington University, 1985 e também Idem, O Retrato de Corte em Portugal: O legado de Anthonis Mor, Lisboa, Quetzal Editores, 1994. ![]() | |||||||||||
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