![]() Presença do discurso histórico medieval nos dramas românticos portuguesesAna Isabel Vasconcelos Universidade Aberta
INTRODUÇÃO São
inúmeros os textos dramáticos que surgem durante a chamada primeira fase
da época romântica, período que aqui circunscrevemos aos últimos anos
da década de 30 e aos anos 40 de Oitocentos. Reflectindo,
por um lado, uma tendência europeia e, por outro, como reacção ao
incentivo dado então, pelo Estado, à produção teatral, os dramaturgos
portugueses dedicaram-se à escrita de textos para o palco, cuja acção,
na sua aparência ou circunstanciadamente, se faz envolver de um episódio
da História de Portugal. Aliás, o drama romântico está identificado
nas nossas Histórias da Literatura ou mesmo do Teatro como “histórico”,
se bem que nem todas essas produções se possam, em nossa opinião, assim
classificar. O
estudo que ultimamente empreendemos e que implicou a análise de cerca de
30 peças de autores portugueses, textos tidos como dramas históricos,
permitiu-nos observar claramente duas tendências na forma como os
dramaturgos de então estruturam e recriam o material histórico: -
uma tendência dominante, que toma a estética romântica como um
modelo estruturante, impondo a "verdade poética" ao material
histórico; -
e um outro conjunto de textos, cuja acção segue o devir dos
acontecimentos históricos, tomando-os como fonte e apoio factual. Em
ambos os casos, contudo, assistimos à interligação de dois fios da acção,
que se entrecruzam e sobrepõem parcialmente: a intriga sócio-política e
o conflito amoroso. No
primeiro conjunto de textos, que denominámos "ficcionalidade da História",
não se regista um tratamento uniforme do material histórico, uma vez que
a "verdade poética", ou seja, o elemento ficcional no interior
do real construído, conjugado com as exigências estéticas da época,
compromete, por vezes, a fidelidade aos registos históricos. Na verdade,
as convenções dramáticas românticas determinam a inclusão de certos
elementos ficcionais, chegando a intriga amorosa a condicionar a recriação
factual. O
segundo conjunto de dramas, mais seguidor do material histórico, tendência
que designamos por "Historicidade ficcionada", deixa um espaço
mais reduzido à maleabilidade dramática e recorre aos registos históricos
como matéria-prima da própria escrita, chegando a entrelaçar os dois
discursos. Trata-se da utilização das fontes então disponíveis para
legitimar uma produção que se inscreve num género que é dramático mas
que, como veremos, também se pretende histórico. É
a este segundo conjunto que pertencem os dois textos que aqui apresentamos
– Lopo de Figueiredo ou a Corte de
D. João II - e - Diogo
Tinoco ou a Corte de D. João II em 1484 – da autoria de Inácio
Pizarro de Morais Sarmento, ambos centrados nas conspirações contra D.
João II. Através da análise das respectivas intrigas dramáticas e num
processo de comparação com diversos testemunhos históricos, pretendemos
demonstrar a preocupação que este dramaturgo oitocentista teve não só
na consulta de material histórico, como no estudo e interpretação de
fontes medievais, contrariando o tão citado texto de Andrade Ferreira,
que durante muitos anos serviu para aplicar ao geral um discurso crítico,
sem que houvesse a preocupação de reler os textos que essa crítica
pretensamente abrangia. Numa
análise efectuada aos "achaques da nossa literatura dramática",
escreveu aquele crítico que "os dramaturgos de então não careciam
senão de algumas crónicas velhas e do Elucidário
de Viterbo[1].
Com estes poucos livros faziam tudo, porque lhes proporcionavam ao mesmo
tempo o seu manancial de inspirações e o subsídio da mais fecunda e autêntica
erudição"[2].
Este é o juízo que tem prevalecido e que queremos aqui fundamentadamente
refutar.
LOPO
DE FIGUEIREDO OU A CORTE DE D. JOÃO II Publicada
em finais de 1839, esta peça subira à cena no Teatro da Rua dos Condes
em Janeiro deste mesmo ano, sob a orientação cénica de Émile Doux, um
francês que dirigia, nesse espaço, um grupo de actores portugueses. Os
acontecimentos históricos incluídos no drama Lopo
de Figueiredo encontram-se registados em duas crónicas medievais, que
o próprio Morais Sarmento refere bibliograficamente em nota final. Rui de
Pina e Garcia de Resende são os autores desses textos históricos que
constituem, sem dúvida, a fonte primária do dramaturgo, uma vez que o
enredo seguiu de perto os factos aí narrados[3]. Estamos
em Évora, no Paço Real, no ano de 1483. Do diálogo inicial entre Antão
de Faria, camareiro de D. João II, e Lopo de Figueiredo, agora também ao
serviço do rei, é-nos dado o ponto da situação: Lopo tem em sua posse
cópias de cartas trocadas entre D. Fernando, Duque de Bragança, e os
Reis Católicos de Castela, cujo conteúdo compromete a lealdade do Duque
relativamente ao seu monarca. "Firmados
no apoio dos Reis de Castela", conta-nos Antão, "ousam os
Grandes ir de encontro à vontade d’ El-Rei" (p.6). Acontece, porém,
que, ao contrário do que se verificava no tempo de Afonso V, em que os
nobres gozavam de "ilimitada jurisdição", D. João II pretende
aumentar o poder real, tendo para tal que pôr cobro à situação de
privilégio da nobreza. Evidentemente que tal atitude suscita movimentações
pela defesa de interesses, desde há muito considerados direitos,
encetando-se uma guerra fria, agravada pela possibilidade de se estar a
gerar uma conspiração contra o monarca. São assim dramaticamente criadas duas esferas bem distintas, com elementos delatores que influenciam camufladamente a relação entre estes dois universos, agravando e precipitando os acontecimentos[4]. Antão, camareiro de D. João II, é a personagem que se movimenta na esfera de intimidade do monarca, exercendo uma influência determinante na actuação da personagem real. Odiado pelos nobres, sobretudo pelos que estão ligados à Coroa por laços familiares, faz de outros instrumentos da sua política. Lopo de Figueiredo é um dos actores que Antão movimenta. Oriundo da esfera da oposição, pois tinha já sido Contador da Fazenda do Duque de Bragança, Lopo entra no espaço real pelas piores razões: vingança de uma afronta sofrida e esperança de conseguir, eliminando terceiros, a mão da amada, personagem pertencente à esfera de influência do Duque de Bragança.
ANTÃO DE FARIA, SÓ Vai cego instrumento da minha política; [...] Enquanto lutas com o incêndio que te abrasa, eu tenho a cabeça fria, e o coração sossegado, e calculo teus movimentos, como o espingardeiro a força da pólvora, e o peso do pelouro: tu és a arma que leva a morte, eu sou a mão que dirige a pontaria, e que a dispara. Queres vingar uma afronta; eu quero mudar a face a uma monarquia; queres alcançar a mão de uma mulher rica, e formosa, eu quero alcançar o poder sem parceiro [...]. (p.8-9) A
cena 3ª é integralmente ocupada com um profuso diálogo entre o Rei e
Antão, aproveitado para nele se condensarem referências a inúmeros
acontecimentos políticos que enformam, em termos de conteúdo, o
desenrolar da acção. Aguarda-se, com júbilo, a chegada do Príncipe D.
Afonso, filho de D. João II, a residir em Moura devido ao tratado das Terçarias,
no qual se acordava dar como "caução" da paz entre Portugal e
Castela a guarda, a terceiros, dos respectivos herdeiros. Anulado este
compromisso, volta agora o Infante para a companhia de seus pais, sendo
tal facto festejado com touros, canas, justas, torneios, saraus, banquetes
e ceias (cf. p. 13). Agora
que o Rei já pode respirar à vontade (cf. p. 9), há que diminuir o
poder de alguns vassalos, pelo que as Cortes de 1481 recuperaram o
juramento de preito e de menagem, bem como a permissão de entrada dos
corregedores nas terras fora da jurisdição real. Apesar de contestadas
estas decisões, o rei insiste em ser obedecido: ANTÃO Assim
o entendo eu, Senhor, mas não pensam todos da mesma forma; e vassalos com
duas mil lanças, e dez mil infantes acostumados aos combates, não são fáceis
de convencer. rei
É vassalo demasiado poderoso para monarquia tão pequena; é preciso ou dilatá-la pelos Algarves d’além-mar, ou fazê-los menos poderosos. O Duque [de Bragança] é altivo, não admira, é neto de D. João I, mas não cabe em seu peito uma aleivosia… (p.10) Começa
aqui a configurar-se o perfil de um monarca que, embora desejoso de
reduzir o poder de alguns nobres e, no presente caso, do Duque de Bragança,
não revela qualquer predisposição que deixe prever o desenlace a que
vamos assistir para o final do texto e que sabemos reflectir
acontecimentos históricos. É pois sobre o seu Camareiro que começamos a
centrar a nossa atenção, uma vez que, apresentando-se veladamente como
opositor do Duque, influencia negativamente o Rei, facultando-lhe as
cartas que Lopo de Figueiredo havia alegadamente retirado do cofre do
Duque (cf. p.12-13) e que constituiriam a principal prova para o
incriminar. Com
o objectivo de reiterar a oposição entre a esfera real e a nobreza
refere-se Antão à notada ausência de fidalgos das festas em honra do Príncipe,
facto que merece, da parte de uma outra personagem, o seguinte comentário:
"Se o favor é todo para os populares, que são quem cercam El-Rei, não
admira que evitem a concorrência…" (p.23). O próprio D. João II
vê esta ausência como um sinal de desconsideração, mas a sua postura
revela-se de tal forma como de "par entre pares" que até as
ordens que emite são contrariadas pela Duquesa de Bragança (cf. p.29). rei
O Duque está com eles: vamos nós, não é bem que os façamos esperar. Permiti-me que eu mesmo vos conduza (dando-lhe a mão). Lopo, conduzi a Donzela da Duquesa. duquesa
Lopo…! o que foi Contador do Duque? Perdoai-me, Senhor, quando meu marido não quer os serviços de um seu criado, não os devo eu querer também… e Beatriz é minha Donzela. Fernão Rodrigues, conduzi a Beatriz… Rei
(com
ar ofendido, mas de afabilidade afectada) Eu
pensava que, não digo nos meus reinos, mas ao menos na minha casa,
poderia governar só. (p.29) O
primeiro indício da tragédia que vai suceder é-nos dado precisamente
por D. Isabel d’Alencastro, cujos sombrios pressentimentos está a
confidenciar a Beatriz, quando as vamos encontrar, no Palácio do Duque de
Bragança em Évora, local onde se vai desenrolar todo o 2º acto: Duquesa,
com
ternura […] agora, quando por ocasião da vinda de meu Sobrinho, fui obrigada a vir à corte, para comprazer com o Duque, e com minha Irmã e Cunhado… parecia-me, que me não podia arrancar de seus braços; que era a última vez que os via, ou que uma longa separação os apartava de mim: o mais velho, o meu Filipe, parece que me entendeu as mágoas do coração; ao despedir-se, com os olhos arrasados de lágrimas, e com a voz cortada de soluços, pedia-me que o não deixasse, que me não tornaria a ver… (limpando as lágrimas) (p.35)
Está,
no entanto, marcado para muito breve o regresso dos Duques a Vila Viçosa.
Sabemos, por Fernão Pereira, que o Duque fora ao Paço apresentar as
despedidas, agora que está terminada a celebração das pazes entre
Portugal e Castela (cf. p.37). Este compasso de espera é aproveitado
para, por meio do diálogo entre o camareiro do Duque e a Duquesa de
Bragança, se expor retrospectivamente o evoluir da tensão entre D.
Fernando e D. João II, e que irá explicar parcialmente um certo clima de
velada hostilidade entre eles. Na
batalha conhecida como de Toro, quando D. Afonso V se retirara e seu filho
aparecia triunfante cheio de glória, o Duque perguntou-lhe por El-Rei, ao
que respondeu: "a sua ala foi rota, e dele não há novas". O Duque,
enfurecido, admoestou-o violentamente: "Não
há novas d’ El-Rei! E há vivo ainda um cavaleiro, um português, e seu
filho??" (p.41) Perdida a batalha, D. Afonso dirigiu-se a França,
na esperança de encontrar em Luís XI um aliado, deixando o governo do
reino entregue temporariamente a seu filho. Quando regressou, conta Fernão
Pereira que o Príncipe, então regente, inquiriu quanto à atitude a
tomar e fora o Duque de Bragança que reagiu da seguinte forma: "Como, Senhor, o haveis de receber, senão como a vosso rei, a vosso
senhor, e pai?" (p.42) Evidente e compreensivelmente, o camareiro ao serviço do Duque apresenta esta personagem como o símbolo da honra, da franqueza e do valor. Em contraponto, a D. João II são atribuídas acções que envergonhariam o próprio pai: FERNÃO […] se D. Afonso V ressuscitara, e vira o que se está passando; […] se visse a sua esposa, a legítima rainha de Castela, a quase mãe de seu filho; sem ter o título de Rainha que era por dois títulos augustos, e sagrados; sem o tratamento de Princesa que nascera […] e metida num mosteiro, forçada a renunciar à vida, a seus direitos, e até ao seu próprio nome!!! (p.42-43) O
acto termina com um acontecimento que vem alterar radicalmente o decurso
da acção: "À Duquesa vieram dizer, que no Paço acaba agora de ser
preso por El-Rei, o Sr. D. Fernando Duque de Bragança, e Guimarães…"
(p.52). Ao ter conhecimento deste facto, tomada de surpresa e de pânico a
Duquesa cai desfalecida. No
acto III, regressamos ao Paço Real, onde as personagens dão continuidade
ao antagonismo dicotómico "coroa – nobreza". Fernão
Rodrigues Pereira, pelo Duque, e Antão de Faria, pelo monarca, expõem as
razões de cada uma das partes. Segundo
o Camareiro do Duque, simulando amizade e simpatia para com D. Fernando,
D. João II conseguira atraí-lo para os seus domínios territoriais,
aproveitando esta condição desprotegida para o prender por uma alegada
conspiração. Instituindo-se juiz em causa própria, nomeou-se presidente
de um tribunal composto por 21 desembargadores. Este ponto de vista
predomina no diálogo com Antão, até porque aquela personagem denota
maior credibilidade, caracterizando-se, pelo contrário, o camareiro do
rei como defensor, sobretudo, dos seus interesses pessoais (cf. p.56). O
leitor é assim aliciado para a causa do Duque, que passa a ser
apresentado como vítima. Preso há 22 dias, sabemos pela Duquesa que
apenas lhe é autorizado o contacto com Frei Paulo, seu confessor, e com
Diogo Pinheiro, seu advogado, não tendo sido sequer consentida qualquer
visita por parte da mulher. Sabemos ainda por Álvaro Pires, pajem ao
serviço da Duquesa, como se processara a prisão do Duque: ÁLVARO […] Foi o Duque despedir-se d’ El-Rei, ele estava com todos os Desembargadores do Paço, mandou sentá-lo ao pé de si numa cadeira de espaldar, pedindo-lhe que se demorasse; não houve negócio em que não pedisse o seu parecer, e o seu voto foi sempre o que valeu: acabado isto, quando ia o Duque a despedir-se, conduziu-o El-Rei à sua guarda-roupa; e o Duque disse-lhe: “Agora estareis bem certo de minha lealdade”. E com razão dizia que muito da sua fazenda gastou ele nas festas que pela vinda do Príncipe se fizeram. E El-Rei com muita afabilidade tornou: “Folgarei que mo proveis e para isso ficareis no Paço, onde como em vossa casa sereis servido pelos meus criados”. O Capitão dos ginetes da guarda tomava com espingardeiros todas as entradas, e saídas do Paço; e ele deu-se a prisão. (p.64-65) O
capítulo XLIV da Crónica de Garcia de Resende e o capítulo XIV da de Rui
de Pina não se afastam no essencial deste relato em analepse, sendo
naturalmente aqueles textos mais ricos nos pormenores. A prosa cronística
alonga-se e insiste na "deslealdade contra El-Rei" e no apoio que
o povo logo deu ao monarca assim que a novidade se espalhou pela cidade,
facto explicado pelo "grande amor que lhe tinham"[5].
O drama de Morais Sarmento omite significativamente estes sinais positivos
relativos ao monarca, exibindo, pelo contrário e como se depreende da narração
de Álvaro Pires, uma personagem dissimulada, que traiu quem nele depositou
toda a confiança e a maior consideração. Tentando justificar este desvio
que o autor dramático assume relativamente aos textos cronísticos, os
quais, apesar de tudo, não duvidam da existência de uma conspiração,
coloca o autor na boca de Antão de Faria as seguintes palavras: ANTÃO […] Garcia de Resende, comporá umas trovas, e escreverá uma Crónica, como lhe eu mandar; que ao serviço d’ El-Rei o pus eu… e dirá o que eu quiser, porque não escreve senão o que eu lhe mando… (p.75) A
própria historiografia institucional é assim posta em causa mesmo no
terreno ficcional, devendo-se tal, neste caso específico, ao facto de
Morais Sarmento ter coligido todos os documentos históricos relativos ao
processo e morte do Duque de Bragança, o que lhe permitiu ter outro ponto
de vista que não o estritamente apresentado nas crónicas: “Quem tiver a
paciência de consultar todos estes documentos, e histórias, e atender a
que é mais fácil defender e justificar um Rei, do que a sua vítima; e
examinar juridicamente o processo, e a defesa feita por Diogo Pinheiro,
Desembargador do Paço, e depois Bispo do Funchal, que se acha nas provas à
história genealógica da casa real, facilmente ficará convencido da inocência
do Duque de Bragança”[6].
De salientar que a historiografia da primeira metade de Oitocentos
interpreta a acusação contra o Duque de Bragança como injusta,
sublinhando a "grandessíssima tirania do seu justiciamento"[7]. Apesar
do peso do facto histórico no desenrolar da acção, a intriga dramática
deste texto não foge ao estereotipado amor proibido, aqui devido não só a
diferenças sociais, como ao facto dos amantes pertencerem a universos políticos
antagónicos. Lopo de Figueiredo, expulso de casa do Duque por roubo, vê
cada vez mais afastada a possibilidade de se unir a Beatriz, uma vez que se
trata de uma donzela muito próxima da Duquesa. Órfã de pai e mãe,
recebera dos duques uma educação e um apoio como se seus pais fossem,
tornando-se-lhes fiel e dedicada. Uma vez mais o sofrimento gerado por um
amor impossível despoleta ou agrava a raiva e o desejo de vingança. Porque
não pode vir a desposar Beatriz, Lopo assume-se como o carrasco do Duque,
relatando a Beatriz a cena da execução. Para
o conteúdo desta narração, Morais Sarmento recolheu, das crónicas, os
elementos que considerou mais significativos: os figos lampos e o vinho que
o Duque comeu e bebeu antes de subir ao cadafalso; a comparação que o
Duque estabeleceu entre a sua morte e o que se passava em França; a graça
mórbida relativa aos trajes de Francisco da Silveira, agora no lugar do
Meirinho-mor, antes ocupado pelo Conde de Marialva, que se demitira para não
ver a sorte do seu amigo; a comparação entre o seu sofrimento e o de
Cristo no Calvário; a carta que entregou a Frei Paulo; e o perdão
concedido ao algoz, tudo elementos constantes das crónicas[8]. Historicamente
a sequência factual não se afasta, de modo significativo, da recriada
dramaticamente, situando-se as disjunções a nível da atribuição de
responsabilidades. As duas Crónicas relativas ao reinado de D. João II
levam-nos a concluir que a razão que terá levado o rei a agir de uma forma
tão radical reside no facto, ainda segundo a versão cronística, incontestável
porque provado em tribunal, da existência de uma conspiração, encabeçada
pelo Duque de Bragança. Estudos actuais, que se debruçaram sobre os
documentos coevos que Morais Sarmento diz também ter consultado (cf. 1839:
82-83), apontam no sentido do conteúdo da correspondência que chegou às mãos
do rei não justificar, em si mesmo, um tal procedimento (cf. Mendonça,
1983: 30). Numa leitura moderna, e pelos vistos actual, dos factos históricos,
Sarmento inocenta dramaticamente o Duque, sublinhando antes a preocupação
do monarca com a centralização do poder real, preocupação essa
aproveitada por terceiros (Antão de Faria) que, amedrontando D. João II
com o exemplo de outros casos ocorridos (cf. p. 11), se vingam de questões
pessoais ou tentam triunfar em rivalidades mesquinhas. Desfazendo qualquer dúvida
que restasse quanto à inexistência da alegada conspiração, o próprio
Lopo, personagem, confessa toda a trama da acção: Lopo
de Figueiredo, só [o
Duque] conheceu o meu roubo, expulsou-me… riscou-me do seu serviço…
maltratou-me de palavras, e espancou-me!! […] Antão de Faria era privado
d’El-Rei… homem intrigante… detestava o Duque porque lhe fazia sombra
o seu poder… procurei-o… prometi-lhe meios de suplantar o seu rival…
acolheu-me, deu-me a sua confiança… e eu por satisfazer a minha
afronta… fui perjuro… falsário… delator… e vendi o sangue do
justo… (p.74) DIOGO
TINOCO OU A CORTE DE D. JOÃO II EM 1484
Curiosamente
em Diogo Tinoco ou a Corte de D. João II em 1484, o drama que Sarmento
escreve logo a seguir, inocenta-se o rei, pois, ao contrário do que o autor
verificou relativamente ao sucedido com o Duque de Bragança, considera
estar historicamente comprovada a conspiração de que D. João II seria vítima
no ano seguinte se não tivesse ele mesmo eliminado o conspirador. Neste
drama, o texto histórico, que ocupa uma parte significativa, entrelaça-se
visivelmente no discurso das personagens, uma vez que as partes textuais
extraídas das crónicas são identificadas em itálico. De salientar que
este drama vem acompanhado de um conjunto de notas finais, cujo objectivo é
justificar as opções dramáticas à luz dos registos históricos. Uma vez
mais, Rui de Pina, Garcia de Resende e Cristóvão Acenheiro são os
cronistas referidos[9]. Tudo
se passa agora em 1484, o delator chama-se Diogo Tinoco e move-se no
universo clerical, uma vez que habita na casa do Bispo de Évora.
Naturalmente que o primeiro acto é aproveitado para se preparar o
desenrolar da acção, pelo que, também em Diogo
Tinoco, há de imediato a preocupação em identificar as personagens
como pertencentes a uma das esferas de poder que ali se confrontam: a real versus
a clerical e a nobre. É Diogo Tinoco, um dos elementos ligado ao segundo
universo, que, por despeito, trai o Bispo e os nobres, e relata ao monarca a
conspiração que contra este se preparava. Ao
contrário do que se verificava em Lopo
de Figueiredo, aqui o conflito amoroso é parcialmente histórico[10],
sendo apenas da ordem do ficcional a introdução do terceiro elemento que
triangula a relação. Não será lícito falarmos de um paralelismo do
enredo dramático destes dois textos, até porque se baseiam em dois factos
ocorridos, possuidor cada um da sua especificidade própria. Se, em Diogo
Tinoco, a conspiração é o núcleo aglutinador das várias acções,
em Lopo de Figueiredo o motivo
passional fez despoletar a acção principal do drama. Em ambos existe a
figura do delator, personagem que se move entre os dois universos, impelido
por despeito e consequente desejo de vingança. Também
em ambos os textos a figura real aparece, ainda que brevemente, em cena,
tornando-se mais visível, em Diogo
Tinoco, uma certa evolução no perfil do monarca. Em conversa com Antão
defende que o seu dever é fazer felizes os seus vassalos, mostrando-se
brando e cauteloso (cf. p. 24). Porém, quando toma conhecimento da conspiração
que se preparava, exibe toda a sua revolta contra a nobreza, acusando-os de
quererem "um rei feito por eles, que lhes deva a sua autoridade, para
tiranizarem os povos" (p. 33). No momento em que se sente ameaçado,
mostra-se perspicaz, corajoso e implacável (cf. p. 38). Claro está que,
segundo o Bispo de Évora, D. João II não passa de um tirano e de um
assassino, que quer fazer deles um rebanho de vis escravos (cf. p. 19). De
salientar que, se exceptuarmos as personagens que funcionam como adjuvantes,
quase naturais, do rei, não encontramos qualquer manifestação de apoio ou
de admiração pelo monarca, nem sequer vinda de elementos do "terceiro
estado", no qual é sabido ter-se apoiado na luta que empreendeu contra
o poder nobiliário. CONCLUSÃO
Com
uma estrutura externa semelhante, estes dois textos de Morais Sarmento
assentam numa progressão dramática que evidencia algum paralelismo de
construção. Ao final de cada dos três actos corresponde um momento de
tensão: no final do 1º acto verifica-se uma ameaça[11], que abre um clima de
expectativa relativamente ao que se irá passar; no final do 2º acto,
durante o qual se verifica um crescendo da intensidade dramática, dá-se o
acontecimento principal, marcado por violência[12];
no último acto a acção é orientada para determinado desenlace por forma
a que o drama cumpra, segundo o próprio autor, o seu fim: "castigar o
crime e premiar a virtude". No
que diz respeito às opções a nível do enredo, indutoras naturalmente de
determinada leitura, Morais Sarmento não deixa margem para dúvidas: quanto
a Lopo de Figueiredo, o julgamento
e execução do Duque de Bragança mais não foi do que "o prelúdio da
grande luta entre o poder real, e o aristocrático; luta que então se
pelejava com o mesmo encarniçamento, com que no século actual se disputam
a vitória o poder real, e o democrático"[13],
o enredo em torno da morte do Duque de Viseu serviu para o autor demonstrar
que, tal como no primeiro texto desaprovara a tirania, neste segundo
desaprova a oligarquia. Curiosamente, e ao contrário do que alguns
historiadores do teatro nos têm feito acreditar, verificamos, neste caso,
que o próprio dramaturgo toma o lugar do historiador, reinterpretando as
fontes e propondo uma outra leitura histórica, na qual faz assentar a sua
construção dramática. É o próprio Morais Sarmento quem diz:
“Escrevendo este drama e tratando de pintar uma época da nossa história,
estudei os escritores coevos e fiz o possível para que o painel fosse
fiel”[14]. De
salientar que, em termos de ciência histórica, estes dois dramas foram
escritos num período de transição, em que não fora ainda instituído, em
termos de escola, um olhar novo sobre o passado nacional. No entanto, já
nessa altura começam a estar à disposição dos leitores textos cronísticos
e alguma outra documentação, o que vem propiciar, por um contacto mais
directo e pormenorizado com o passado, a possibilidade da sua releitura, uma
vez que novos testemunhos escritos começam a ter divulgação. Por
outro lado, a História, enquanto conhecimento, era uma séria preocupação
do cidadão letrado, a quem interessava estar com o seu tempo, e, no
presente caso, do dramaturgo, autor das obras que aqui apresentámos. De uma
forma lúdica e instrutiva, Morais Sarmento proporcionou, através da
escrita ficcional, ao cidadão comum, a lembrança de aspectos do passado,
procurando transmitir determinados valores e modelos de civilidade. De
salientar que se apresentava também, entre os pares, como cidadão
interveniente, o que era tido como uma atitude de elevado valor na sociedade
oitocentista, favorecendo uma certa notoriedade social.
Notas [1] Refere-se Ferreira à obra do franciscano Joaquim Santa Rosa de Viterbo que publicou o Elucidário das palavras, termos e frases, que em Portugal antigamente se usaram, e que, segundo Serrão, constitui um "guia inestimável, ao mesmo tempo filológico e histórico", que muito contribui para um estudo diacrónico da nossa língua (SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal [Vol. III]: 1977, p.241). [2] FERREIRA, José Maria de Andrade, “Achaques da nossa literatura dramática”, in Literatura, Música e Belas Artes, Lisboa, Tip. de J. G. de Sousa Neves, tomo II, 1872, p.162. [3] Rui de Pina, autor da Crónica de D. João II, foi cronista-mor deste monarca, tendo-lhe sobrevivido e acompanhado também o reinado de D. Manuel. Garcia de Resende, se bem que ainda contemporâneo da corte de D. João II, só nasce por volta de 1470, pelo que, sobretudo, acompanha os dois reinados seguintes. Embora não desempenhasse exactamente as funções de cronista, Resende compôs uma obra de conteúdo histórico, a Crónica d´El-Rei D. João II, considerando-se "ter bebido em largos sorvos o manuscrito de Rui de Pina" (SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal [Vol. I], 1977, p.127). [4] A indiciar esta visão dicotómica do conflito está a forma como as personagens são apresentadas logo na abertura do drama. Na função que desempenham, todas elas são indicadas como ou partidários de El-Rei ou do Duque de Bragança (cf. SARMENTO, Inácio Pizarro de Morais, Lopo de Figueiredo ou a Corte de D. João II, Porto, Tipografia Comercial Portuense. Drama histórico em 3 actos, 1839: 4). [5]
RESENDE, Garcia de, Crónica d´El-Rei D. João II, Lisboa, s/e, Biblioteca de Clássicos
Portugueses, 1902 [vol. I], p.101. [6] SARMENTO, Inácio Pizarro de Morais, Lopo de Figueiredo ou a Corte de D. João II, Porto, Tipografia Comercial Portuense. Drama histórico em 3 actos, 1839, p.84. [7]
Cf. SCHAEFFER, Henrique, História de Portugal, Lisboa, Tipografia de José Baptista Morando
(13 tomos), 1842-47 [tomo 5º], p.57. Cf. também DENIS, Ferdinand P., Portugal
Pitoresco ou a Descrição Histórica deste Reino, Lisboa, Tip. de
L. C. da Cunha (4 vols.), 1846-47 [vol. I], p.227. Oliveira MARTINS
perspectiva o assunto de uma forma um tanto diferente, atribuindo o
sucedido a velhos ódios e inimizades, a que se vinham juntar agora
"as intenções, rebeldes em um, tirânicas no outro" (História
de Portugal, Lisboa, IN/CM, 1988, [453]). [8] Cf. SARMENTO, op. cit., p.80-81 e RESENDE, op. cit, p.111-113. [9] Cf. SARMENTO, Inácio Pizarro de Morais, Diogo Tinoco ou A Corte de D. João II em 1484, Porto, Tipografia Comercial Portuense, 1840, p.51-56. [10] Trata-se dos amores entre o Bispo de Évora e Margarida Tinoco que são históricos. De salientar, contudo, que não querendo ofender os costumes, Sarmento alterou os factos, fazendo da "mancebia", historicamente relatada, um amor platónico. [11] Em Lopo de Figueiredo, Lopo ameaça ultrapassar todo e qualquer obstáculo, incluindo derrubar o poder dos Duques de Bragança, para concretizar a sua união com Beatriz. Em Diogo Tinoco, Diogo ameaça matar o Bispo. [12] Violência física, no caso do assassínio do Duque de Viseu; e violência psicológica, no caso da prisão do Duque de Bragança. [13] SARMENTO, Inácio Pizarro de Morais, Lopo de Figueiredo ou a Corte de D. João II, Porto, Tipografia Comercial Portuense. Drama histórico em 3 actos, 1839, p.84. [14] SARMENTO, Inácio Pizarro de Morais, Diogo Tinoco ou A Corte de D. João II em 1484, Porto, Tipografia Comercial Portuense, 1840, p.56. ![]() | |||||||
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