O bispo Airas Vasques e o alegado discurso em prol de Sancho II: mito ou realidade?

MARIA JOÃO BRANCO

Universidade Aberta / Oxford University

1. A questão.

A questão levantada pelo caso do discurso que o bispo Airas Vasques teria proferido em abono de Sancho II, face a Inocêncio IV, durante o 1º Concílio de Lião, em 1245[1], é quase um caso policial. Caso policial esse que  se integra no âmbito deste Congresso pelo facto de se tratar de um discurso de legitimação, cuja finalidade era provar o direito de um rei a continuar na posse da sua dignidade e no exercício da sua autoridade.

Com efeito, a referência a esse discurso encontra-se apenas em alguns autores Seiscentistas, que o editaram, de acordo com os quais o prelado de Lisboa teria advogado a causa do rei, argumentando que, ao contrário do que pretendiam os seus detractores, Sancho II era um bom rei e um fiel cristão, que alargara o território do Reino como nenhum dos seus antecessores até então e que procurara favorecer a Igreja de forma não igualada por qualquer dos reis que o tinham precedido. Ainda segundo o texto do mesmo discurso, Airas Vasques teria terminado concluindo que, se alguém deveria ser afastado nessa ocasião, eram os maus conselheiros, da companhia e dos olhos do rei, e não o Rei do Reino[2].

Esta é, verdadeiramente, uma imagem muito pouco usual de um rei que uma percentagem significativa da historiografia coeva e actual preferiu sempre qualificar de tíbio e incapaz para governar. Voltaremos a este ponto.

O alegado discurso de Airas Vasques teria assim sido, de facto, um verdadeiro discurso de legitimação. Verdadeiro não por ser autêntico, mas apenas por se situar cronologicamente num período “pré-pós-modernista” em que “os discursos” ainda não tinham assumido a polissemia e polivalência do seu estatuto actual, nem os historiadores se questionavam sobre a validade ou as potencialidades do mesmo, apesar de já o manipularem de forma exemplar[3].

O que faz dele um caso tão sedutor, não é a perseguição de um texto fragmentário ou perdido.  Aqui, não se perdeu o texto, só não sabemos se o que chegou até nós corresponde a algo que tenha sido alguma vez proferido ou apresentado e se o que temos corresponde a um (esse sim perdido) original em latim. O que faz a busca das raízes deste texto tão interessante é a sua tradição e percurso, a forma como não se encontra qualquer referência à sua existência na historiografia anterior a 1640, o facto de essa tradição ter sido apenas preservada em dois autores Seiscentistas, mencionada por um Setecentista e retomada mais uma única vez, no século XIX, para ser de novo votada ao quase completo esquecimento a que os mais antigos cronistas o tinham inicialmente condenado[4]. 

O problema que hoje quero analisar é precisamente a possibilidade da existência real desse alegado discurso e a definição do período “pré-pós-modernista” a que preferencialmente poderemos atribuir a sua “produção”. É que, na verdade, não sabemos muito sobre essas condições de produção. Não sabemos mesmo quase  nada.

A primeira transcrição deste documento apareceu publicada na História Ecclesiástica dos bispos e arcebispos de Lisboa, de D. Rodrigo da Cunha[5]. Contudo, muito contra o que é usual neste autor, nem é mencionada a origem deste testemunho, nem se tratava de um original em latim[6]. A referência à fonte de onde teria retirado o discurso a cuja transcrição concedeu seis das vinte e oito colunas que dedicou à vida deste bispo[7], é vaga e imprecisa, limitando-se a informar-nos que o encontrou em “memorias que achámos deste sucesso[8].

Uma vez que nenhuma das crónicas dos séculos XIV, XV e XVI, quer em Portugal, quer no resto da Península Ibérica, apresenta esta tradição, que o próprio António Brandão também silencia, seríamos facilmente induzidos a considerar este discurso como uma “invenção” do século XVII. D. Rodrigo da Cunha, tão empenhado na defesa dos interesses portugueses junto de Roma  poderia muito bem ter sido tentado a recriar um documento “falso”.

Mas, neste caso, a teoria da falsificação, tão fácil, e tantas vezes aplicada sem grande critério para solucionar todas as incongruências da produção dos nossos historiadores do século XVII, depara com um obstáculo superior. Na verdade, vê-se com muita dificuldade qual o propósito que poderia servir semelhante falsificação no contexto histórico em que Rodrigo da Cunha se movimentava.  Com uma nova dinastia para legitimar nos anos 40 e 50 do Seiscentos Português, que utilidade poderia ter, face ao Papa de então ou de quem quer que estivesse envolvido no processo de reconhecimento da soberania de D. João IV, o exemplo dado por um fiel bispo do remoto século XIII, que pugnava pela preservação dos direitos de um rei que estava quase a ser afastado do seu reino por falta de competência governativa e por abusos contra a Igreja? Que interesse poderia ter para um homem como Rodrigo da Cunha, registar na sua narrativa os argumentos contra a substituição de um “rei inútil” (que assim se tornava, afinal, “útil”)? Que ganho poderia advir de reavivar na memória dos seus contemporâneos os argumentos contra os direitos de um rei que tinha assumido o poder revestido do papel de aliado e garante da Igreja, que renovara a linha sucessória dos monarcas portugueses, e que iniciara assim uma nova fase no reino, com base na teoria de que o rei deve zelar pelo bem comum e que aqueles que assim o não fazem devem ser afastados do poder?

Se a lógica tem algum lugar nestes assuntos, ela ditaria, pelo contrário, a adopção da defesa dos direitos de Afonso III face a Sancho II, e não o oposto, como de facto se verifica.  Para além disso, embora todos saibamos que Rodrigo da Cunha deve ser tratado com cuidado, na medida em que qualquer das suas obras tem incorrecções e faltas de rigor, é forçoso reconhecer que, em geral, não costuma forjar documentos, nem se podem apontar grandes falhas nas transcrições daqueles textos que podemos comparar com os originais.

Quererá  tudo isto dizer que o documento pode ter sido, no seu original, autêntico?

Foi o que me propus averiguar quando iniciei este trabalho, optando, como modo de análise, pelo estudo da tradição que desse texto até nós chegou, nos seus caracteres internos e no seu contexto de produção, para tentar definir, por um lado, se a argumentação aduzida se inseriria mais num discurso do século XIII ou do século XVII, e por outro, se as razões daqueles que o mencionam na sua obra historiográfica e as razões que o bispo Airas Vasques poderia ter tido para proceder desta forma apresentam qualquer indício de credibilidade que possa indicar-nos um esboço de solução para o problema da sua autenticidade e autoria.

 

2. A tradição e o discurso

Para além da versão de Rodrigo da Cunha (cuja primeira edição da História Eclesiástica de Lisboa data de 1642[9]), existem apenas outras duas transcrições do discurso de Airas Vasques: uma na entrada sobre Sancho II no Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso, editado em 1652[10], e outra na Memória sobre a deposição de Sancho II elaborada pelo Cardeal Saraiva, publicada em 1855[11], mais de dois séculos depois das duas primeiras publicações.

Tomás da Encarnação, em 1759, na Historiae Ecclesiae Lusitanae[12], muito embora não transcreva o discurso do bispo de Lisboa, menciona a presença de Airas Vasques no concílio de Lião e como aí defrontara os que tentavam depor o monarca, realçando ainda o fiel apoio que mantivera a Sancho II até à sua morte. Num lacónico mas significativo excerto, diz-nos que “depois de morto Sancho II” acompanhara Afonso III nas campanhas de conquista do Algarve[13].

No seu Portuguezes nos Concílios Geraes, António Pereira de Figueiredo, em 1787[14], aderindo sem contestação ao testemunho de Rodrigo da Cunha, a quem segue de perto, atestava a presença do bispo em Lião e aceitava sem reservas a autenticidade do  discurso de Airas Vasques.

E é tudo o que se pode encontrar sobre este episódio. 

A imagem que a anterior cronística veiculara sobre o monarca afastado do governo do seu reino por decisão papal - já bastantes o estudaram[15]- foi, desde muito cedo, a de um rei inoperante e inútil, que não fazia justiça por ser demasiado fraco e brando, impotente nas mãos de maus conselheiros e de uma pérfida mulher[16]. Os Livros de Linhagens e as Cantigas de Escárnio, bem como o Cancioneiro popular - assim nos revelava há muito Carolina Michaelis de Vasconcellos[17]- reproduzem a mesma censura, por vezes velada e por vezes bem explícita, que já a cronística hispânica dos finais do século XIII e dos inícios do XIV se esforçava por promover: o rei era “manso”, mas nada justificava a traição dos seus vassalos, sempre condenada[18]. 

Na verdade, não é estranho, nem pouco usual, encontrar veementes condenações ao procedimento daqueles que abandonavam o seu senhor natural. No entanto, e não obstante o facto de a tradição historiográfica acima referenciada ser prenhe em exemplos deste tipo, quando foi necessário corporizar heróis para essa posição, escolheram-se os alcaides dos castelos, com especial relevância para a mítica figura de Martim de Freitas, o alcaide de Coimbra que só entrega a sua cidade a Afonso III depois de ter ido a Toledo certificar-se da morte do rei e depositar as chaves da sua cidade no caixão do seu rei[19].  Não o exemplo do bispo Airas Vasques.

Tanto quanto sabemos, nunca ninguém, antes de Rodrigo da Cunha, achou útil ou apropriado mencionar o facto de o bispo de Lisboa ter repudiado publicamente, durante o concílio de Lião, a atitude dos que pediam ao Papa que interviesse, o que é, no mínimo, estranho.

As cantigas de escárnio são, de facto, um veemente exemplo de como, em cronologia muito próxima daquela em que tudo se teria passado, havia uma corrente que condenava não só o facto de vassalos abandonarem o seu rei, mas sobretudo de essa atitude ser ditada por Roma, cuja legitimidade para o fazer era posta em causa de forma muito evidente[20]. A identificação dos argumentos eruditos e das citações de Direito Canónico que recentemente foi levada a cabo em duas dessas cantigas[21], ultrapassando assim os primeiros tentames de Carolina Michaelis nesse sentido, são bem ilustrativos, quer do nível intelectual dos seus autores, quer da percepção que os autores das cantigas tinham dos acontecimentos políticos coevos, das formas e dos ambientes onde eles eram debatidos, e da forma como se encarava a questão da relação entre os poderes temporais e espirituais.

Ora, justamente, não foi a esse tipo de argumentos nem de protestos que Airas Vasques teria recorrido no seu excurso em Lião. E pareceria natural que esse tivesse sido o caso, a termos em conta o facto de que a ideia de um bispo que se opusesse a uma intromissão pontifícia que considerava irregular em relação à esfera de acção à qual o Papa se devia circunscrever não seria considerada nem estranha nem incomum nos turbulentos meados do século XIII, durante o qual a teoria da separação dos poderes temporal e espiritual tinha atingido um dos seus picos mais altos[22].

No entanto, a versão do discurso que chegou até nós não parece integrar-se em nenhuma das correntes panfletárias da sua época, nem reflecte qualquer das preocupações políticas de não intromissão dos poderes nas esferas recíprocas. Nem uma vez se refere a desejável separação dos poderes, se menciona a alegoria das relações entre a cabeça e os membros do poder, o Sol e a Lua, a aberração de um corpo bicéfalo, os braços do poder, a superioridade de um em relação ao outro, a foice em seara alheia  ou a justiça da intervenção pontifícia ratione peccati, indirecte[23].

Na leitura que chegou até nós, apenas se pode reconhecer um excurso bem intencionado e moderadamente inflamado, quase diríamos ingénuo, onde se exaltam as virtudes do rei[24], especificando, com exemplos bem documentados e, o que é mais importante e surpreendente, documentáveis, o seu papel de belicoso opositor dos sarracenos, de bem sucedido conquistador de terras ao infiel e de protector das Igrejas e das instituições eclesiásticas. A imagem que Aires nos dá evidencia ainda o facto de que sempre que o rei errara fora célere em se emendar, e que se porventura não corrigira seus erros mais cedo fora por ignorância deles[25]. Argumentos que nos fazem lembrar idêntico “discurso” utilizado por D. Dinis nos textos das concordatas que mais tarde celebrou com o Clero[26].

Aqui, supostamente em 1245, são estas qualidades que o bispo propõe como razões mais que suficientes para manter Sancho II no trono, não qualquer argumento teórico baseado em autoridades bíblicas ou legais.

De acordo com o mesmo texto, Airas Vasques teria, isso sim, chamado a atenção para os perigos derivados das possibilidades abertas com o exemplo de um Papa que desse ouvidos à malevolência de conselheiros mal intencionados: nunca mais nenhum soberano estaria a salvo, perseguido eternamente pela incerteza da lealdade dos seus vassalos e assombrado pelo fantasma da traição latente[27].

Apenas neste passo, que alude à impotência dos reis face às manobras dos seus nobres, podemos reconhecer um “discurso” que nos reenvia para referenciais que despertam ecos de plausibilidade dentro da literatura coeva sobre a relação entre os poderes. A preocupação com o papel dúbio que os vassalos podem desempenhar face ao seu soberano está patente ou subjacente em muitos textos do século XIII e XIV, nomeadamente na obra legislativa de Afonso X[28] e também, com especial premência, na parte da Crónica de Afonso X que transcreve documentação desse rei, onde ele desabafava que desconfiava dos seus conselheiros e nobres e onde vituperava contra o destino daqueles que têm de temer permanentemente a praga da traição[29].

Mas quanto ao resto do texto, nenhuma das tentativas que fizemos para o identificar com produção de idêntico cariz surtiu qualquer efeito. Uma vez que não se verificava nenhuma semelhança com os publicistas nem com os canonistas, procuraram-se paralelos em textos que pela sua natureza e/ou funções pudessem ter alguma afinidade com este. Foi o caso de uma tentativa de comparação com o discurso veiculado pela Grandi non immerito[30], a bula que afasta Sancho II da governação, e ainda com algumas das cartas escritas pelo chanceler de Frederico II após a sua deposição, uma das quais foi dirigida ao rei de Castela e na qual se previne Fernando III dos perigos que ameaçavam os imperadores e reis nos tempos que corriam, chamando-lhe a atenção para os desmandos de um Papa que se arrogava o direito de determinar o futuro dos poderes temporais e da soberania imperial[31].

O seu próprio caso e o de Sancho II são mencionados nesta epístola como eloquentes exemplos das liberdades e abusos que o poder espiritual estava a tomar face aos monarcas e soberanos do Ocidente Medievo, sob pretexto de zelar pela preservação das liberdades eclesiásticas. Não fora só contra ele, Imperador, que o Papa se erguera, atacava também monarcas e em breve não haveria forma de o travar. Mas o tom que subjaz a esta como a todas as outras cartas que Pietro della Vigna  teria escrito é muito mais erudito e as propostas feitas obedecem muito mais a uma agenda declaradamente de teoria política bem alicerçada sobre as relações entre os poderes do que aquele que podemos reconhecer no discurso do prelado de Lisboa.

Sobretudo, Pietro della Vigna desafia e contesta o poder pontifício, coisa que o nosso prelado de Lisboa nunca se atreveu a fazer, nem ao de leve, a acreditarmos no texto que chegou até nós.

Semelhante tom de contestação e afirmação de soberania tínhamos encontrado, sim, na troca de correspondência entre Portugal e Roma que conhecemos nos últimos anos de Sancho I, ainda no pontificado de Inocêncio III[32] e nos anos durante os quais Gregório IX procurou sem cesso trazer Sancho II de regresso às boas graças com Roma[33], a ponto de lhe conceder o privilégio de não ser excomungado pelos bispos de Portugal enquanto combatesse o infiel. Segundo a versão que chegou até nós, também Airas Vasques não se esquecera  de referir este privilégio  no seu encómio[34].

A bula Grandi, é de tal forma bem fundamentada sob o ponto de vista legal que mereceu integrar o direito canónico no título Sobre os Excessos dos Prelados[35]. Não há qualquer semelhança na forma do discurso ou no modo como a argumentação se desenvolve que permitam aproximá-la da leitura do discurso de Airas Vasques que até nós chegou.

Assim, nos termos em que o conhecemos, este discurso não se deixa inserir em nenhuma das categorias que costumam caracterizar a literatura política do século XIII, que poderíamos classificar como panfletarista.

Mas também não o conseguimos integrar nas polémicas que caracterizaram o século XVI e XVII, nomeadamente sobre a longa e aprofundada questão da soberania régia, dos limites da mesma, da tirania e do direito dos povos a depor ou mesmo assassinar reis tiranos. Longa polémica, com raízes medievais bem sedimentadas, mas muito actual ao longo de todo o século XVI e XVII, como atestam tão bem o tratado  Vindiciae, Contra Tyrannos que menciona o que se passou em Portugal[36] e o tratado de Juan de Mariana (1536-1623),  Del rey y de la institución real[37] (1599) que não o menciona.

Não que devêssemos esperar que autores como Rodrigo da Cunha, Tomás da Encarnação ou Jorge Cardoso (para já nem mencionar o Cardeal Saraiva), pudessem aproveitar a questão para se oporem à decisão do Papa, ou contestar o seu papel de garante da paz e harmonia, o que parece inconcebível, mas sim para tentar compreender, se devemos encarar este texto como  fruto de uma produção tardia integrada em qualquer outra tradição.

A resposta é negativa. O tipo de polémica que aborda as questões que se prendem com este tema no século XVII não se ajusta a nenhum dos autores que reproduzem nas suas obras o alegado discurso de Airas Vasques, nem os argumentos aí patentes têm qualquer espécie de comparação com os que os polemistas utilizavam.

Não se encontra nela qualquer reflexo das teorias da época, mas a questão era tão relevante, para não dizer escaldante, no século XVII, que quer Rodrigo da Cunha quer Jorge Cardoso, que transcrevem o texto, se vêm na necessidade de justificar porque o inserem nas suas obras. Jorge Cardoso tinha uma missão mais difícil, na medida em que tinha de explicar porque incluía um rei que fora afastado do reino pelo Papa na lista dos seus varões ilustres e tingidos de santidade. Mas também Rodrigo da Cunha achou necessário desculpar o Papa por não querer dar ouvidos aos argumentos do bispo de Lisboa, mesmo recorrendo a uma imprecisão.[38]

Assim, a agenda de qualquer destes autores não é provar a ilegitimidade, nem da atitude do Papa nem do exercício do poder de Sancho, mas apenas “limpar” a imagem de um rei que, segundo um, tinha sido injustiçado até aí, e fora vítima do conluio de seus validos[39],  segundo o outro era um exemplo para os outros monarcas cuja sede de poder poderia ter afastado do ideal cristão de bom rei.

Nesta medida, Jorge Cardoso revela-se muito mais consciente das questões do seu tempo e procura explicar como o poder corrompe e como o poder espiritual serve para repor a justiça e a ordem certa, de novo, no espírito dos cristãos que se tinham afastado do caminho recto. Mas é do seu próprio discurso que se pode deduzir isto e não da tradição que deixou perpetuada na cópia do alegado excurso de Airas. Segundo o Agiológio, a intervenção pontifícia apenas despoletou em Sancho II a consciência dos erros em que estava e a vontade de se emendar em excessos de santidade[40].

Ficamos assim com um vazio. Este texto não parece incluir-se em nenhuma tradição, antes parece existir no vácuo, quase sem razão de existir.  Não se compreende que motivação poderia ter impelido estes autores seiscentistas a produzir tal texto a partir do zero, mesmo porque os pontos em que deveriam ter tocado se tal fosse o caso são totalmente omitidos. De igual modo, também não se conforma ao formato tradicional do panfletarismo politico-teológico típico do século XIII.

Contudo, e ao contrário do que acontece para os autores Seiscentistas, em Airas Vasques conseguem detectar-se razões e causas que poderiam abonar em favor da possibilidade de produção de tal texto.

Esses razões derivam  fundamentalmente do estudo de dois elementos fundamentais para a compreensão da possibilidade da produção de um texto como este: em primeiro lugar, do estudo do percurso biográfico de Airas Vasques, onde a proximidade a Sancho II  e a tensão com Afonso III são patentes, e em segundo lugar na forma como o discurso é elaborado, sem relação com as grandes polémicas teóricas, mas em contrapartida alicerçado em fortes argumentos retirados da efectiva prática política do rei, todos comprováveis documentalmente.

3. O bispo Airas Vasques, Sancho II e Afonso III.

Assim, tanto quanto me foi dado apurar, Airas Vasques apenas aparece na documentação portuguesa depois de ter sido nomeado bispo de Lisboa, pelo arcebispo João Aires de Compostela, de quem era sobrinho e em cujo cabido fora arcediago[41]. No entanto, aparece logo no meio de um conflito, como convém a qualquer bispo que se preze, tendo sido repudiado como tal quer pelo cabido da cidade, que tinha postulado o chantre, quer pelos poderosos da cidade, que o acusavam de ser estrangeiro ao cabido da cidade (extraneo) e demasiado próximo de João Aires, arcebispo de Santiago[42].

A questão tinha-se iniciado à morte de João Raolis, que deve ter acontecido entre Julho e Outubro de 1241. Segundo a carta que, a 12 de Outubro de 1243, nomeava os juizes delegados para procederem ao inquérito sobre os acontecimentos (Martinho, bispo de Salamanca, Tibúrcio, bispo-eleito de Coimbra e frei Garcia Peres, dominicano), o cabido alegara que tinha reunido, obedecendo aos prazos legais, e postulado (por delegação no deão e no tesoureiro de Lisboa) o chantre Ricardo Guilherme, visto que este apenas tinha ordens menores. Tinham enviado a Roma o pedido de reconhecimento para obstar a qualquer impedimento levantado por Compostela. O arcebispo João Aires, teria, então, alegado demasiada delonga no processo de escolha do sucessor de João Raolis, e chamado a si o legítimo direito de nomear o bispo de Lisboa,  escolhendo para tal cargo o seu sobrinho, Airas Vasques[43]. Cerca de quatro meses e meio mais tarde, depois do inquérito realizado, o Papa dava a sua sentença definitiva[44] com base no argumento que a postulação não fora legal porque alguns membros do cabido tinham-se retirado durante o processo de eleição, o que era contra o Direito Canónico, tendo assim, desde logo, invalidado a postulação, razão pela qual o arcebispo se sentira no direito de nomear o novo bispo. Quer Airas Vasques, quer o cabido de Lisboa tinham apresentado procuradores muito convincentes, com argumentos bem estruturados. Os de Airas Vasques, João Peres de Orense (diocese onde  o bispo era então Lourenço Hispano)  e  um outro cónego de Compostela,  ilustram bem as raízes do novo bispo e a região de onde este eclesiástico recebia apoio.

Mas agora, o Papa, invocando a sua plena potestas, confirmava a nomeação do arcebispo de Compostela, por não achar os argumentos do cabido convincentes nem procedentes, terminando assim definitivamente a questão[45].

Estas questões eram muito comuns na diocese de Lisboa nestes anos[46], mas neste caso, a nomeação compostelana parece ter sido a parte fundamental no arrastar do conflito.

Em Agosto de 1244, no meio de uma conturbada situação política e uns escassos cinco meses depois de Inocêncio IV ter determinado a legitimidade de Airas Vasques como bispo de Lisboa, o rei Sancho II confirmava à igreja de Santiago de Compostela todas as doações dos seus antecessores a essa arquidiocese, com especial ênfase para os coutos que detinha em Portugal, pondo-os directamente sob a sua especial protecção[47].

Se considerarmos que Sancho II não só beneficiara Santiago em 1244, mas também tinha privilegiado a sé de Lisboa em data próxima[48], não parece descabido considerar que o bispo de Lisboa fosse próximo de um rei que favorecia a sua antiga e a sua nova Sé. Também parece lógico aceitar que o rei pudesse ter tentado utilizar essa ligação a Santiago e a um prelado com fortes ligações a essa arquidiocese como contrapeso à influência que, por então, exercia na cúria romana o arcebispo de Braga, Silvestre Godinho (a partir de 1238 quando se hostilizara definitivamente com Sancho II, juntamente com os bispos do Porto, Coimbra e Guarda), papel que, a partir da morte deste, viria a também a assumir o seu sucessor, João Viegas de Portocarreiro, um dos delegados que efectivamente foi a Lião pedir a deposição de Sancho II. E também não estranha considerar que o próprio bispo de Lisboa visse no apoio régio um bom suporte contra a facção do cabido que a ele se opusera  não havia muito e contra os poderosos da cidade que já uma vez o tinham  expulso de Lisboa.

A tradição refere que Airas Vasques estivera presente no Concílio de Lião, presença que a documentação atesta sem margem para dúvidas[49].

Poderíamos inferir que tivesse voltado para Lisboa pouco depois, por ter recebido a confirmação dos padroados de algumas igrejas da sua diocese que o rei Sancho II concedera ao bispado e cabido de Lisboa logo a 20 de Setembro desse ano[50]. No entanto, apenas o encontramos realmente em Lisboa a partir de 1247, muito embora desde logo a tratar de questões que se prendem directamente com a sua autoridade eclesiástica na diocese[51].  Não obstante, os elementos que temos sobre a acção do prelado durante esse período, exclusivamente virada para assuntos pastorais, nada nos dizem sobre a sua adesão a Afonso III.

Rodrigo da Cunha e António Brandão referem que ele já confirmava documentação régia de Afonso III desde 1250, tal como já anteriormente confirmara documentação do chanceler do rei e beneficiara o grão-mestre de Santiago[52], o que poderia indicar uma colaboração incontestável com o novo rei. Não devemos, contudo, tal como já afirmei noutro lado[53], descartar a possibilidade de um entendimento difícil entre Airas Vasques e o rei e respectivos oficiais. Pelo contrário, o que sabemos deste homem enquanto bispo de Lisboa nos anos que se seguiram à bula Grandi de 1245 confirma a existência de uma certa tensão entre ele e o novo “regime”, e entre ele e a cidade que tão declaradamente apoiou a causa do Bolonhês e que tão veementemente se negara a recebê-lo como bispo alguns anos antes.

Assim parece indicar o sínodo que celebrou em Lisboa, logo em 1248 onde as  importantíssimas constituições que o integram, não deixam margens para dúvidas sobre o espírito reformador deste prelado. Nem sobre o estado de caos em que encontrou a diocese e seus servidores eclesiásticos, tanto ou mais desregrados que os leigos e os oficiais régios a quem, não obstante,  também se imputam graves e repetidas ofensas às liberdades eclesiásticas[54]. 

A sua ausência das importantes cortes de Leiria 1254, assim como a presença nessa mesma assembleia quer de um dos eleitores, o deão de Lisboa Mestre Pedro Julianes, quer do candidato que fora postulado por parte do cabido e derrotado, o chantre Ricardo Guilherme[55],  podem indicar que as tensões com o cabido de Lisboa, tão evidentes uma década atrás, ainda persistiam nos anos 50.

Assim parece indicar ainda a inegável ligação que tinha aos regrantes de S. Vicente de Fora[56], de quem era familiar. Essa ligação, a termos em conta a falta de adesão à causa do Bolonhês por parte dos meios crúzios de Santa Cruz[57], e a aceitarmos que a reacção dos conimbricenses podia ser válida para outros cenóbios da mesma ordem, ou que, pelo menos, poderia ser encarada como potencialmente indicadora de adesão à causa contra Afonso III nesses anos, poderia também ter trazido a Airas Vasques, bastantes dificuldades no relacionamento com a cidade de Lisboa e com os apoiantes do novo rei. 

Na verdade, temos mesmo elementos explícitos sobre esse mau entendimento. Do elenco das queixas contra Afonso III levadas a Roma pelos bispos portugueses em 1268, consta um capítulo onde se narram as perseguições a que o prelado de Lisboa fora submetido por oficiais de Afonso III, os quais teriam perseguido Airas Vasques em diversas ocasiões, submetendo-o a prisão e maus tratos, num crescendo que culminara na espoliação e ferimento do bispo nas suas casas de Lisboa. Segundo o mesmo relato, este último episódio só não terminara com a morte imediata do bispo porque este correra a refugiar-se no Mosteiro de S. Vicente, onde viria a falecer como consequência desses maus tratos[58].

O testamento do bispo, feito em S. Vicente quando este já estava doente e fundando sepultura nesse local[59], não menciona as razões da sua presença nesse cenóbio, mas parece lícito inferir que se relacionassem com esses episódios. Velhos antagonismos, portanto, que ainda pareciam repercutir-se em 1258, quando finalmente teria morrido. 

Parece assim plausível aceitar que ao longo da sua vida este homem poderia ter representado ele próprio a tradição de colaboração com Santiago de Compostela e de colaboração com Sancho II quando este rei parece ter tentado usar as suas ligações castelhano-leonesas para ganhar novo peso nos acontecimentos políticos, posição que eventualmente o impedira de ter um verdadeiro bom entendimento com o novo rei. A sua contestada eleição e problemático exercício do poder poderiam assim reflectir a atmosfera de tensão e violência que se vê reflectida nos episódios de oposição entre Afonso III e o bispo de Lisboa e poderia ainda ter servido de pano de fundo a uma intervenção em Lião como a que os citados autores Seiscentistas lhe atribuíram.

Isto, quanto à sua vida. Mas, e quanto ao teor do texto? Não se insere em nenhuma das tendências mais eruditas, já o disse; isso torná-lo-á  mais credível ou menos?

Uma coisa é certa. Todos os incríveis[60] actos de piedade, benevolência e conquista que o autor do texto alega em prol de D. Sancho II são comprováveis em documentação régia. Quando procurei saber se realmente se encontravam tantas dotações a casas religiosas e tantos documentos alegando a conquista territorial quantas as mencionadas no discurso de Airas Vasques, foi possível identificá-las, em elevada percentagem, nos seus originais[61]. O diplomatário de Sancho II, tal como foi possível reconstituí-lo, é uma sequência de doações a Sés episcopais, mosteiros Regrantes e Ordens militares, com forte preferência pelas de Santiago e do Hospital[62].

Quem quer que tenha elaborado o discurso que hoje aqui nos ocupa, quando quer que isso tenha acontecido, tinha, ou tinha tido, sob os olhos, documentos régios. Não estava a testemunhar em falso, embora pudesse estar a fazer o que tantas vezes se fez: a contar apenas parte da  história.

Estes são factores importantes. Havia necessidade, havia motivação, havia tradição familiar e laços clientelares, havia oportunidade, havia mesmo base real para afirmar o que se afirmava no discurso de legitimação dos direitos de Sancho II que o bispo teria apresentado em Lião. Mas decerto não teria sido oportuno ou sensato entrar em grandes argumentações teóricas sobre os limites do poder pontifício num contexto como aquele em que decorreu o I Concílio de Lião, menos de oito dias depois da efectiva deposição de Frederico II. 

Talvez estes sejam importantes argumentos em favor da tese de uma provável autenticidade, num original perdido.

*

*     *

Mas a verdade é que nem temos um original nem sequer uma tradução mais tardia, senão na sua versão publicada. Para além do que referimos, dele nada mais sabemos. Não se pode explicar porque razão a tradição historiográfica omitiu um testemunho tão importante até que Rodrigo da Cunha o desencantou no arquivo de Lisboa  na forma das tais “memórias antigas”.

E assim, até que uma milagrosa reabertura do Arquivo da Patriarcal nos permita estudar os fundos desse importante núcleo e, quem sabe, descobrir o original tardio e em português de tão desejadas “memórias antigas”, ou até que noutro lado qualquer nova luz nos possa ser fornecida por evidência suplementar ou indirecta, teremos de continuar na escuridão de uma  pergunta em aberto:  mito ou realidade?

 

 

Notas

[1] A comitiva que então se teria deslocado a Lião para pedir ao Papa que depusesse Sancho II era composta pelo arcebispo de Braga, o bispo de Coimbra, João Gomes de Briteiros e João Viegas Portocarreiro. Estes são os intervenientes que sempre se mencionam, sendo raros os autores que referem a presença do bispo de Lisboa, muito embora a sua presença no concílio, como parte activa,  esteja bem atestada documentalmente. Cf. infra, nota 49.

[2] "A bondade da sua condição, a facilidade de seu trato, fez que homees malignos e perversos se apoderassem delle & sem consentimento ou noticia sua cometessem as exorbitâncias que a V. Santidade se tem referido: a estes importa tirar do lado, & olhos del Rey, & não ao Rey do reyno que houve de seus antepassados, que tem acrescentado tanto & com tanta utilidade da Igreja..." Historia Ecclesiastica da Igreja de Lisboa: Vida e Acçoens de seus Prelados e Varoens Eminentes em Sanctidade que nella florecerão..., Lisboa,  Manoel da Sylva, 1642, fol.162v. (= Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl.)

[3] Cf., a título de exemplo, o artigo de Gabrielle Spiegel, sobre os meios e formas utilizados pelos cronistas que na a abadia de S. Dinis de Paris punham a escrita da história ao serviço da legitimação e promoção da dinastia que serviam (“Political Utility in Medieval Historiography. A Sketch” in The Past as Text. The Theory and Practice of Medieval Historiography, Baltimore and London, John Hopkins University Press, 1997, p.83-98). As falsificações, manipulações e fantasias entram na composição das narrativas de forma exemplar, como a própria autora tão evidentemente o demonstra (Ibidem, especialmente p.85-88).

[4] Excepção deve ser feita, como seria de esperar, ao caso de Herculano História de Portugal, desde o começo da Monarquia até ao fim do reino de Afonso III  (notas críticas de José Mattoso), t. II, Livro V, Lisboa,  Bertrand, 1981, p.509-510, nota 227, onde o autor repudia totalmente a possibilidade de autenticidade do discurso de Airas Vasques, com base apenas na constatação de que no texto da bula Grandi non immerito se mencionava que a decisão merecera o assentimento de todos os prelados presentes ao concílio. Na sua nota crítica a esta mesma nota, Mattoso parece aderir à proposição de Herculano, aduzindo, para consubstanciar a tese  anterior, que era inverosímil que um bispo “galego, imposto à força, havia menos de um ano, ao cabido de Lisboa pelo arcebispo de Braga e pelo Papa viesse defender tão calorosamente um rei que ele mal conhecia” (Ibidem, p.557, nota crítica 103). Voltaremos a este ponto. No século XX, para além de  Mattoso (op. cit., loc. cit.), apenas Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. I, Lisboa, Verbo, 1977, p.132-133 referencia essa tradição, que aceita, sem contestação nem crítica, seguindo a versão do cardeal Saraiva.

[5] Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., ff. 161v-162v.

[6] A versão que temos é já em português, pressupondo que o texto a que Rodrigo da Cunha teve acesso era já uma tradução / tradição  tardia. Parece-me redundante referir como normalmente Rodrigo da Cunha, sempre que  transcreve documentos desta época, o faz primeiro em latim e depois nos dá a sua tradução em português.

[7]A transcrição deste discurso ocupa mais de 20% do total dos capítulos que dedicou à vida e obra deste prelado, o que só por si fala da importância que Rodrigo da Cunha decidiu dar a este testemunho na sua narrativa.

[8] Cunha, Hist. Eccl., fl. 161v.

[9] Cf. nota 2.

[10] Agiologio Lusitano dos Sanctos e Varoens illustres em virtude do reino de Portugal e suas conquistas, consagrado aos gloriosos S. Vicente e S. Antonio insignes patronos desta inclyta cidade de Lisboa e a seu illustre cabido sede vacante, Lisboa, Officina Craesbeeckiana, t. I, 1651, p.38-40. Entrada do dia 4 de Janeiro.

[11] Cardeal Saraiva, D. Francisco de S. Luís, Memória sobre a deposição de elrei D. Sancho II”, in  Obras Completas de D. Fancisco de S. Luiz Cardeal Patriarcha de Lisboa (publ. António Correa  Caldeira), t. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, p.73-77.

[12] Cf. Thoma ab Incarnatione, Historiae Ecclesiae Lusitanae..., t. I, Coimbra, Oficyna Academia, 1759, capítulo I, § III, p.31.

[13]Erga Sanctium ita amore afficiebatur, ut eum ab illatis injuriis in Concilio Lugdunensi tueretur, & ab adversariis, qui Alphonsum fratrem Bononiae Comitem evehere conabantur, vindicaret. Lusitaniam reversus eo Diocesi regendae incubuit, ut anno Christi 1248 (...) Mortuo Sanctio, cum Alphonso in Algarbium profectus apud Sancta Mariam de Faro (....) eiusdem Regis donationem de Castro de Albofeira erga Avisensem Ordinem testis firmavit“, idem, ibidem.

[14] Portuguezes nos Concilios Geraes: isto he, relação dos Embaixadores, Prelados, E Doutores Portuguezes que tem assistido nos Concilios Geraes do Ocidente, desde os primeiros lateranenses até o novíssimo tridentino, Lisboa, Oficina António Gomes, 1787, p.33-34.

[15] As sínteses mais relevantes são as recentes abordagens feitas por José Mattoso, "Dois séculos de vicissitudes políticas" in História de Portugal (dir. José Mattoso), v. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p.119-123 e por Leontina Ventura, "A Crise de meados do século XIII", in Nova História de Portugal (dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques), Vol. III - Portugal em definição de fronteiras. Do condado Portucalense à crise do século XIV (coord. Maria Helena Coelho e Armando Carvalho Homem), Lisboa, Presença, 1996, p.104-109 e idem, A nobreza de corte de Afonso III, 2 vols., Coimbra, dissertação de doutoramento policopiada, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992, p.429-432, bem como o clássico artigo de José Antunes, António R. Oliveira e João Gouveia Monteiro, "Conflitos políticos no reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão. Estado da questão", Revista de História das Ideias, 6 (1984), p.25-103.

[16] Leontina Ventura, A Nobreza de Corte..., v. I, p.410-414, já compilou e transcreveu todas estas referências, mas apenas a título de exemplo, veja-se o testemunho da IVª Crónica Breve de Santa Cruz,: "E começou de seer boo rey e de Justiça mais ouve maaos conselheiros. E despois alli em diante nom foy justiçosso. E sayo de mandado da Rainha dona Biringeira sua tia e cassousse com Miçia Lopes. E des alla foi pera mal" (IVº Crónica Breve de Santa Cruz, in Anais e Crónicas Avulsas de Santa Cruz de Coimbra (ed. António Cruz) Porto, Biblioteca Pública Municipal, 1968, p.146).

[17] “Em Volta de Sancho II”, Lusitania, 2 (1924), p.9-13.

[18] Cf. Maria João V. Branco, “A menoridade de Sancho II: breve estudo de um processo exemplar”,  Discursos. Língua, Cultura e Sociedade, 3 3(2001), p.92-93.

[19] Elaborada na sua forma mais clássica a partir da Crónica de 1419, p.140-142, e seguida pela maioria dos autores subsequentes.

[20] A questão da relação entre os poderes e da possibilidade de um Papa depor um imperador ou um rei era uma das questões mais prementes no pensamento do século XIII, como em breve, o conciliarismo viria a monopolizar o debate, quando a questão passou a versar a possibilidade de os Papas também serem depostos. Cf., por todos, como introdução à questão, J. A. Watt, "Spiritual and temporal powers", in Cambridge History of Medieval Political Thought c. 350-c. 1450, ed. J. Burns, Cambridge, New York, Melbourne, Sydney, 1991, p.367-423.

[21] Cf. Lisa Jefferson, “Use of Canon Law, Abuse of Canon Lawyers in Two Cantigas Concerning the Deposition of D. Sancho II of Portugal “, Portuguese Studies, 9 (1993), p.1-22

[22] Vicente Hispano, e em certa medida também Silvestre Godinho, juristas de Afonso II e colaboradores próximos de Sancho II até 1238 (Vicente foi seu chanceler entre 1224 e 1237), são dois dos exemplos mais significativos desta corrente dualista tão bem representada nesta época. Para o pensamento de Vicente Hispano, cf., por todos, Ana Maria B. Lima Machado, Vicente Hispano. Aspectos biográficos e doutrinais, separata do “Boletim do Ministério da Justiça”, nº 141 e 142, Lisboa, 1965, especialmente p.179-205, onde a autora se demora na análise da questão da iurisdictio divisa  e do imperium spirituale na obra do canonista mencionado.

[23] Idem, ibidem.

[24] Segundo a versão dada por Rodrigo da Cunha, o bispo de Lisboa teria começado por dizer, face ao Papa e concílio: “Não se pode negar, santíssimo Padre e senado sapientíssimo, que são grandes os males que padece o reyno de Portugal mas nunca confessarei são tantos que hajão de obrigar a tão nobres e leais vassalos como os Portuguezes ajuntarem hua tam exorbitante novidade, pedem que em lugar de seu Rey os governe, como se o Rey, ou pela idade ou pelo juizo ou pela prudencia & zelo de seus vassalos não fora para isso. Esta nosso Rey D. Sancho o segundo deste nome, na idade varonil, no melhor de seus annos;tem presença, tem disposição, tem magestade digna de Rey; a piedade & respeito com que abraça & venera todas as cousas que pertencem à religião é incrivel.” (Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., fl. 161 v). A partir de então começa a enunciar os actos piedosos que comprovavam tudo o que desejava expor, no que se referia à prodigalidade régia para com os eclesiásticos.

[25](...) os que(...) diante de vossa presença  o desacreditam(...) nem com razão o podem  chamar autor dos males que contão, porque logo que delle são entendidos são remediados”. (R. da Cunha, Hist. Eccl., f.162v).

[26] Com D. Dinis este tipo de argumentação já assume muito mais o carácter de discurso segundo os parâmetros a que nos habituámos, mas a desculpa é muito semelhante. Embora na maior parte dos casos a resposta dos procuradores do rei seja que ele nunca fizera nada das coisas de que era acusado, mas que de qualquer modo prometia que não as faria daí em diante, nalgumas delas admite-se o “erro”, como no artigo xxiii, onde os procuradores respondem: “(...) honde creem os  procuradores que esto que se contem no artigo, que o non sabe ElRei, nem ouvio que mal feito fosse ca se o soubesse fezera-o emendar(...) in Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. IV, Porto, Livraria Civilização Editora, 1971, Apêndice IX,  p.65.

[27]Não consintaes, Beatissimo Padre, que vassalos rebeldes & descontentes achem em vos favor, ou para anuelarem a novidades ou para effeituarem treições: não o digo porque me descontente da pessoa do Infante D. Afonso; merecedor he de maiores reynos, mas pelo exemplo que daqui podem tomar as idades vindouras, com o que nenhum Principe se terá por seguro em seu estado, nenhum amará a seus irmãos em quanto cuidar que tem nelles quem por semelhantes meios os possa desapossar do que he seu; nenhum fará justiça, por medo de descontentar a malfeitores, que dando capa de virtude a seus insultos, virão a fazer culpa no rey, o que he maldade nos vassalos” (Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., fol. 162v)

[28] Veja-se, nomeadamente a preocupação permanente com a manutenção do respeito e do senhorio do rei e com a afirmação da superioridade do senhor natural face aos restantes vassalos, patente em todos seus trabalhos legislativos. Cf. Alfonso X el Sabio. Fuero Real, (ed., estudio y glosario de Azucena Palacios Alcain, Barcelona, PPU, 1991, p.5-7, no Lº 1, titulo II - De la guarda de los reyes et su señorío; Leyes de Alfonso X- I. Espéculo (ed. e análise crítica por G. Martínez Díez, com colaboração de J. M. Ruíz Asencio), Avila, Fundación C. Sánchez Albornoz, p.115- 126,  Lº II, títulos 1 e 2, “De la guarda de la persona del rrey” e “De la guarda de la onrra del rrey”; Partida Segunda de Alfonso X el Sabio. Manuscrito 12794 de la BN. Edición y estudio, (ed. A. Juárez Blanquer y A. Rubio Flores), Granada, Impredisur, s/d, p.46, 48-49, onde, na Partida II, tit. I, leis VIII e XI-XII, se explica em que consiste o poder real e como devem comportar-se os outros grandes do reino face ao rei. Os exemplos desta mensagem subliminar multiplicam-se ao longo de toda a Segunda Partida, dedicada ao rei, mas estes passos são porventura suficientemente representativos do que se pretende explicar.

[29] Recordem-se as palavras da famosa carta que Afonso X teria escrito ao infante D. Fernando em 1273, segundo a transcrição patente na Crónica de Alfonso X: [os nobres]querían tener syenpre los reyes apremiados e leuar dellos lo suyo pesándoles e buscando carreras por do lo deseredasen e lo desonrasen, commo lo buscaron aquéllos donde ellos vienen. Et asy commo los reyes criaron a ellos punaron ellos de los descriar e de tollerle los reynos, algunos dellos seyendo ninnos. E asy commo los reyes los heredaron, punaron ellos de los deseredar lo uno consejeramente con sus enemigos, lo ál a furto en la tierra, levándole lo suyo, poco a poco enagenándogelo.” (Crónica de Alfonso X, según el Ms. II/2777 de la Biblioteca del Palacio Real (Madrid) (ed., notas de Manuel González Jiménez), Real Academia Alfonso X el Sabio, Murcia, 1998, p.145-146). Sobre esta carta e problemas textuais que suscita, v. ainda P.K. Rodgers, “Alfonso X writes to his son. Reflections on the Crónica de Alfonso X”, Exemplaria Hispanica, 1 (1991-1992), p.60-79. Agradeço à Drª Rita Costa Gomes a referência a este artigo, onde se procede a muitas precisões sobre esta carta.  

[30] Publ. em Sousa Costa, Mestre Silvestre e Mestre Vicente, Juristas da contenda entre Afonso II e suas irmãs, Braga, Ed. Franciscana, 1963, nota 547, p.436-439 (=Sousa Costa, Mestre Vicente).

[31] Já Herculano (História de Portugal, p.526, nota 251) transcreveu o passo relevante desta epístola. Repete-se aqui essa transcrição pela relevância que assume no contexto desta discussão. Diz o teor da carta, entre outras coisas: “Requerimus igitur, & adfectionem vestram rogamus attente quatenus diligimus advertentes, qualiter summus pontifex suis viribus, qui nihil habere debet, cum gladio non contentus, in alienam messem falcem praesumptuosus immittit; & ut non longe petatur a nobis exemplum: qualiter in regno Portugaliae honoris sibi  usurpaverit dignitatem, curas vestras & animos excitetis.” (in Petri de Vineis, Epistolarum quibus res gestae ejusdem Imperatoris aliaque multa ad Historiam ac Jurisprudentiam spectantur continentur t. I, l.vi, Basileia, Joh. Christ., 1740, cap. Xv, p.122-123).

[32] Cf. uma das bulas mais representativas deste “tom” enviadas por Inocêncio III a Sancho I, a Si diligenter attenderes, de 23 de Fevereiro de 1211 (publ. Bulário Português. Inocêncio III (1198-1216), ed. Avelino Jesus da Costa e Maria Alegria Marques), Coimbra, INIC, 1989, doc. 154, p.295-297.

[33] Para todo este processo e respectivos documentos, cf. Sousa Costa, Mestre Vicente, p.356-450 e respectivas notas onde os documentos são publicados.

[34] Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 318,  p.197, onde publica a bula Fide qua tutillas, de 20 de Outubro de 1232 onde Gregório IX de facto reserva para a Santa Sé a prerrogativa de excomungar o rei, enquanto ele lutar contra os sarracenos em prol do alargamento dos territórios da verdadeira fé.

[35] Cf., por todos, E. Peters, The Shadow King. Rex Inutilis in Medieval Law and Literature, 715-1327,  New Haven and London, Yale Univ. Press, 1970, p.135-169.

[36] Cf. Stephanus Junius Brutus, Vindiciae, Contra Tyrannos: or, concerning the legitimate power of a prince over the people, and of the people over a prince (ed. e trad. George Garnett), Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1994, p.163, onde se refere o caso português como um exemplo entre muitos outros onde os reis foram depostos por vontade do povo. Devo agradecer ao Dr. Peter Linehan esta referência.

[37] Juan de Mariana, “Del Rey y de la institution real”, in Obras del Padre Juan de Mariana, tomo II Madrid, Imprenta de los sucesores de Hernando,  B.A.C.,1909, p.463-576, ignora totalmente o caso do rei português, que poderia ilustrar o seu capítulo sobre a legitimação da deposição ou mesmo assassínio de um rei tirano. Mas talvez que não tenha referido o caso português, que aliás conhecia bem, por não ter achado que essa fosse uma deposição legal. Com efeito, assim o afirma de forma explícita no capítulo que lhe dedica na sua História de España, Lº 13, cap. IV, “Que Don Sancho, rey de Portugal, fué echado del reino” onde afirma que Afonso X acabou por aceitar Afonso III por causa do casamento com sua filha ilegítima e do pagamento de párias: “(...) Esta comodidad prevaleció contra lo que parecia más honesto y justificado” (Ibidem, p.375-376).

[38] Na verdade, quando todos sabemos que a resolução relativa a Sancho II foi tomada oito dias depois da deposição de Frederico II, e não antes, D. Rodrigo da Cunha (Hist. Eccl., fl. 162v-163) afirma: “Não foram mal ouvidas no Concílio as rezões do bispo D. Ayres, mas como o Summo Pontífice tratava de privar do Império a Federico segundo antes para esse effeito ajuntara aquelle concilio, quis da deposição d’el-Rey D. Sancho fazer degrao para a de Federico (...)”.

[39] É, evidentemente, o caso de Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl, fol. 161v., onde se afirma  a propósito dos validos do rei  Acharam-se juntamente neste concilio(...) com aquella maes conveniencia sua, que pertenção do reyno, de tirarem della com os poderes e braço  da Sé Apostolica, a el-rey D. Sancho o segundo (...) achacando a el-Rey  os crimes que erão proprios de seus validos que ele não podia, se bem desejava grandemente remediar”.

[40]Assim que nós não pretendemos louvar a D. Sancho o que o Summo Pontífice vituperou, mas sua subsequente penitência, piedade e louvável fim, para consolação e exemplo de príncipes repentidos que se talvez desvanecidos com a soberania de seu poder cometeram excessos em seu governo imitando depois os Santos e virtuosos reis, penitentes se emendam trocando os pretéritos erros em virtuosas acções para reformação do passado e satisfazer ao Omnipotente, Rei dos Reis, que lhes deu os Estados, de cuja administração lhes há-de tomar rigorosa conta”. (Agiológio, p.37)

[41] Sabemos que fora arcediago de Compostela através de duas cartas de Gregório IX, datadas de 23  e 28 de Junho de 1239, segundo as quais teria sido Airas Vasques, nessa qualidade, quem trouxera o pálio de Roma para João  Aires, acompanhado por  João Peres . Cf. AV, Reg. Vat., 19, ann. XIII, fl. 121v, c.92-93, listado em L. Auvray, Les Régistres de Grégoire IX, vol. III - IV, Paris, Écoles Françaises d’Athènes et Rome, 1910, p.72, nºs 4895- 96. Quanto ao parentesco com o arcebispo, o que sabemos deriva das indicações das bulas mencionadas na nota seguinte, onde se refere a proximidade familiar. As indicações dadas pelos Livros de Linhagens (tal como já indiquei noutro lado, Maria João Branco “Reis, bispos e cabidos: a diocese de Lisboa durante o primeiro século da sua restauração”, Lusitânia Sacra, 2ª série, 10 (1998) 90-91 = Reis, bispos e cabidos) estabelecem-lhe parentescos múltiplos, sobretudo na indicação de uma série de sobrinhas e sobrinhos, e mesmo na indicação de um irmão com patronímico diferente do seu (Fernão Hermiges), mas não nos dizem nada sobre a sua ascendência, excepto que era fidalgo da terra de Límia (LL 68 A3). O mesmo se pode dizer de seu tio, o arcebispo de Santiago, João Aires, que aparece nos Livros de Linhagens com um papel activo, mas sobre o qual muito pouco nos é dado saber, em termos de parentesco e ascendência (LD 5A4; LV1AO12; LL74E3). Nenhum destes elementos confere com os sobrinhos  mencionados no testamento de Airas Vasques (nem com Fernando Mendes, consubrino nostro, a quem deixa os Livros de Direito, nem com Sancho, nepoti nostro, nem com Rodrigo Peres, nepoti nostro). Também não se encontra qualquer referência a uma outra personagem importante no seu testamento, um afilhado seu, João Peres de Orense (filiolo nostro), que noutro sítio considerei seu filho (Reis, bispos e cabidos, p.92, nota 91), mas que presentemente me inclino mais a considerar como seu afilhado (IANTT, Chanc. Afonso III, Lº 3, fl. 32vº-33). As ligações à Galiza e sua nobreza são inegáveis, as múltiplas intervenções do arcebispo João Arias, mesmo em assuntos familiares da nobreza portuguesa são também inegáveis, e a sua pertença a famílias influentes da nobreza galega é incontestável. No entanto, no actual estado dos nossos conhecimentos é muito difícil discernir em que linhas se processava essa influência, sendo muito mais fácil verificar as manobras diplomáticas dentro do universo da hierarquia eclesiástica, do que dentro de um sistema de solidariedade linhagística.

[42]quodam extraneo, archidiacono familiari suo [de João Aires]” (cf. Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 362, p.245).

[43] Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 362, p.244-245.

[44] Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 363, p.245-247, em cartas datadas de 1 e 3 de Março de 1244, uma para o bispo de Lisboa e outra para o arcebispo de Compostela.

[45] É ainda nesta última bula, que se menciona como, logo após a nomeação compostelana, quando o novo bispo viera tomar posse da diocese, fora expulso pela potentia laicalis, questão que já abordei noutro lado (Reis, Bispos e Cabidos, p.91, nota 139). Durante todo o processo os documentos acima citados referem-se-lhe sempre como electus, tratamento que se estende à carta, dada a 2 de Março do mesmo ano de 1244, segundo a qual Inocêncio IV o nomeava como juiz  delegado na contenda que afectava nesses anos a difícil  eleição do bispo de Évora (publ. Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 574, p.460-463). Parece assim que apenas após a resolução do conflito o bispo foi devidamente sagrado e confirmado. A partir de 6 de Março de 1245, quando se tratava de mandar o vigário investir o novo pároco de S. Pedro de Óbidos uma vez que o bispo não estava na diocese por estar tunc in remotis agens (AV, Reg. Vat. 21, ann. II, fol. 165, nº 379, listado em E. Berger, Les Régistres d’ Innocent IV, vol. I, Paris, Écoles Françaises d’Athènes et Rome, 1884, p.175, nº 1118), o seu nome já aparece como bispo de pleno direito na documentação emanada da Cúria Pontifícia. Esta forma de tratamento é confirmada pela documentação relativa às questões com S. Vicente de Fora, das quais nos restam cartas emitidas em em Março e Abril desse mesmo ano (IANTT, Mosteiro de S. Vicente de Fora, mç. 3, docs. 6 e 7) onde já aparece, quer a fazer uma composição amigável, quer a beneficiar esse cenóbio, como bispo de Lisboa. Para as questões com S. Vicente, cf. também IANTT, Colecção Especial, cx.3, nº11.

[46] Como se sabe, uma questão semelhante, muito embora muito mais demorada, ocorrera à morte de Soeiro II, quando a postulação de Vicente também não fora aceite. Para um ponto da situação, cf. Maria João Branco, Reis, bispos e cabidos, p.55-94.

[47] A carta de nomeação pontifícia do bispo de Lisboa foi dada a 1 e 3 de Março de 1244; a 1 de Agosto de 1244 Sancho II confirmava a Santiago os coutos de Nogueira, Cornelha e Mouquim (A López Ferreiro,  Historia de la Santa A. M. Iglesia de Santiago de Compostela, tomo V, Santiago, Seminario Conciliar Central, 1902, p.223) num dos raríssimos documentos que conhecemos deste rei para os anos que medeiam entre 1241 e 1245. O outro, datado de dois dias mais tarde, é uma confirmação geral dos privilégios dados pelos seus antecessores, pondo-os sob sua protecção. O primeiro destes documentos, patentes, respectivamente no ACS, Tumbo B, fol. 276r e Tumbo C, fl. 164v, foi editado por M. T. González Balasch, El Tumbo B de la catedral de Santiago. Edición y estudio. Tese de doutoramento inédita, Granada, 1978, p.651-653. Ambos aparecem citados em Marta González Vázquez, El arzobispado de Santiago: una instancia de poder en la Edad Media (1150-1400), Santiago, Seminario de Estudios Galegos, 1996, p.305, 363.

[48] Não são apenas os privilégios a Santiago de Compostela que nos alertam para uma possível proximidade do rei ao bispo. Sabemos também que a 20 de Setembro de 1245 o Papa enviava uma carta a confirmar ao bispo e cabido de Lisboa a posse dos padroados das igrejas de Santa Maria de Marvila de Santarém, S. Pedro e S. Martinho de Sintra, e S. João de Óbidos, que Sancho II lhes concedera. Note-se que nesta bula, emitida em data posterior ao seu afastamento da administração do reino, o papa refere-se a Sancho II ainda como Carissimus in Christo filius noster...illustris Rex Portugaliae.  (Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 540, p.428-429).

[49] O bispo de Lisboa foi um dos signatários do rolo onde ficaram exaradas as transcrições de privilégios dados pelos monarcas ao Papado, obedecendo a ordens de Inocêncio IV, durante o Concílio, documento datado de 17 de Julho de 1245 (cf. Sousa Costa, Mestre Vicente, nota 545, p.434-435). Estas actas já tinham sido publicadas anteriormente várias vezes, com diversas variantes, mas figurando sempre o nome do bispo de Lisboa. Sobre os problemas textuais levantados por este complexo documento, cf. G. Battelli,  “I Transunti di Lione del 1245”, Mitteilungen des Instituts für Österreichische Geschichtsforschung, LXII (1954), p.336-348.

[50] Cf. supra, nota 48.

[51] Em Agosto de 1247 e Abril de 1248, encontramos dois documentos no fundo de Alcobaça (IANTT, Mosteiro de Alcobaça, 1ª incorp., mç. 7, doc. 22, 26) onde Airas Vasques concede licença ao Mosteiro para anexar a Igreja da Pederneira aos rendimentos da enfermaria (doc. 22) e para edificar quatro igrejas no couto (doc. 26). Este último também é citado por Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., fol. 163v. Em 1248 celebrou ainda um importante sínodo (pub. por García y García, Synodicon Hispanum. II - Portugal, dir. A. García y García, Madrid, B.A.C., 1982, p.297-300).

[52] Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., fl. 164-167, e António Brandão, Monarquia Lusitana. Parte Quarta (intr. e notas Silva Rego e Dias Farinha), Lisboa, Imprensa Nacional, ff. 179, 183v-184v, 200-200v, dão as referências cujos “originais” são facilmente confirmáveis nos livros de registo de Afonso III, a partir de 1250. Basicamente, o bispo já estaria junto ao rei durante as campanhas de conquista do Algarve. Isto parece confirmar a afirmação de Tomás da Encarnação, quando mencionava que apenas após a morte de Sancho II Airas Vasques aceitara colaborar com o novo rei. Cf. supra, nota 13.

[53] M. J. Branco, Reis, Bispos e Cabidos..., p.91-93.

[54] Tal parece ser a justificação para as 12 constituições que foram promulgadas neste sínodo. A primeira  constituição refere os grandes abusos dos poderes seculares, perpetrados pelo rei, príncipes e oficiais régios, que ocupavam bens eclesiásticos e multavam eclesiásticos sem razão e o desrespeito, por parte dos leigos em geral, das liberdades eclesiásticas (com especial enfoque na questão do foro eclesiástico e do confisco e ocupação dos bens dos clérigos). Mas as restantes constituições tratam quase exclusivamente de abusos dos eclesiásticos, que cobravam dinheiro pela administração de certos sacramentos, pela celebração da missa ou ainda que desrespeitavam certos preceitos e advogavam em causas leigas ou apelavam para o rei ou para os poderes seculares em vez de apelar para o foro competente. Pode pressentir-se nestas constituições uma certa cumplicidade entre os "poderes seculares" e parte dos eclesiásticos da diocese que este sínodo procurar regulamentar e anular. Tudo isto parece confirmar a ideia da existência de uma facção que se opunha a Airas Vasques e que predominava na cidade de Lisboa, baseada na aliança entre uma parte dos cónegos do cabido e os poderes concelhios. Para o texto destas constituições, cf. Synodicon Hispanum. II - Portugal (dir. A. García y García), Madrid, B.A.C., 1982, p.297-300.

[55] Marcelo Caetano, As cortes de Leiria de 1254, Lisboa, Academia das Ciências, 1954, p.32-35.

[56] Onde, de facto viria a fundar sepultura, conforme pede no seu testamento, (IANTT, Chancelaria de Afonso III, Lº 3, fl. 32v-33) e em cujos obituários é relembrado e comemorado como familiaris desse cenóbio (cf. British Library, Add. Mss. 1544, Obituário de S. Vicente de Fora). Muitos dos autores antigos atribuem-lhe mesmo uma filiação em Santa Cruz de Coimbra, mas sem grande fundamento. No entanto, a termos em atenção a sua atitude para com o Mosteiro de S. Vicente de Fora, para além dos elementos acima referidos, podemos ver como, quase imediatamente após ter acedido definitivamente ao episcopado de Lisboa, celebrou uma composição amigável com esse cenóbio em Abril de 1245, depois de já lhes ter doado as igrejas da Arruda e de S. Julião do Tojal em Março desse ano (IANTT, Mosteiro de S. Vicente de Fora, mç. 3, docs. 6 e 7).

[57] Sobre a posição de Santa Cruz face à crise de 1245-48 e a resistência a Afonso III, cf., por todos, Armando Martins, O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, secs. XII-XV. História e Instituição., vol. I - dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1996, p.409-433.

[58] Maria Alegria Marques (Maria Alegria Marques, O Papado e Portugal no tempo de Afonso III (1245-1278), Coimbra, dissertação de doutoramento policopiada, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p.499-521) publicou o longo documento onde se encontra o elenco das queixas contra o comportamento de Afonso III, levadas a Roma em 1268. Aí se refere o caso de Airas  Vasques como um exemplo dos bispos  a quem o rei perseguira e a quem mantivera presos nas suas igrejas. Na queixa XXIIª, descreve-se o crescendo dos acontecimentos: primeiro fora sequestrado e ameaçado de morte pelos sequazes do rei em Alpedrinha, durante algum tempo; aí tinham tirado as orelhas e ferido a alguns dos seus criados; o reposteiro do rei, acompanhado de alguns outros acólitos, tinha então vestido a capa do bispo e empunhado o báculo, e peregrinara assim vestido pela vila, espalhando benções; tinham depois espoliado o bispo da sua capela, de todas as vestes e de tudo o que tinha consigo, e iam e vinham quando lhes apetecia, levando tudo para o rei. Depois teve de ir a pé até Alcobaça, que ficava a duas léguas de Alpedrinha, com enorme sofrimento, porque sofria de gota (passione podagre), doença que o impossibilitava de caminhar; em Alcobaça, onde o receberam, esteve preso sete ou oito meses; aí estivera em condições infra humanas, guardado por homens do rei que nunca o abandonavam, dia e noite, nem sequer quando necessitava satisfazer as necessidades da natureza. Entre outras coisas, o rei fez ocupar todos os bens da mesa episcopal, móveis e imóveis; mais tarde, de acordo com o texto: “alia vice obsessus et expugnatus in domibus suis episcopalis apud Ulixbonam a pretore regis, ubi coram eo fuit quidam domicellus, nepos eius qui sibi ponere calcaria, per eodem pretorem, cum venabulo, interfectus et episcopus, cum venabuli eiusdem hasta percussus et inde confugiens idem episcopus ad monasterium Sancti Vincentii in capite civitatis, perterritus  et collisus, incidit in lectum aegritudinis et ibi, post modicum tempus, expiravit” (Maria Alegria Marques, Ibidem, p.509-510).

[59] Cf. supra, nota 56.

[60] “Incrível” é a palavra utilizada por Rodrigo da Cunha, Hist. Eccl., fl. 161v: “a piedade e respeito com que abraça e venera todas as cousas  que pertencem a Religiao he incrivel”.  Jorge Cardoso, na versão do mesmo discurso que copiou para o Agiológio (p. 38ª) alterou "incrível" para “invencível”. Embora não possamos fazer quaisquer juízos sobre esta variante, não deixa de ser interessante considerar as razões para semelhante alteração, conscientemente feita ou apenas fruto de cópia descuidada.

[61] A documentação da primeira metade do século XIII referente à Trindade de Santarém, assim como a relativa aos Dominicanos e Franciscanos, quer de Santarém, quer das outras localidades mencionadas por Airas Vasques desapareceu quase por completo dos fundos dessas instituições, pelo que não há provas documentais dessa parte da alegada prodigalidade de Sancho II para com as instituições mendicantes. Apenas conhecemos com maior pormenor os episódios em torno do papel mediador do rei aquando das questões entre o bispo do Porto e os Dominicanos dessa cidade.

[62] No anexo apenso a este texto, fez-se um quadro comparativo onde se reproduzem os argumentos de Airas Vasques numa das colunas e os documentos régios que os confirmam nas restantes colunas. Apesar disso, há ainda, no diplomatário de Sancho II, um número significativo de doações a outras pessoas ou instituições religiosas, tais como as feitas à ordem do Hospital e do Templo ou à arquidiocese de Santiago de Compostela, que não se incluíram neste elenco por não terem sido mencionados no alegado discurso do bispo de Lisboa.

 

 

   

 

 Anexo

Alegações de Airas Vasques e documentação de Sancho II

Discurso transcrito em Rodrigo da Cunha

Folio

Data

Original de Sancho II

Referência

Aos seis meses de reinado, com gastos  da sua real fazenda, mandou dar satisfação ao arcebispo de Braga, coisa que seu pai, por muito que os pontífices o tivessem ameaçado, nunca fizera.

 

160v

1223/06

Concórdia de Sancho II com

o arcebispo de Braga sobre

as questões que o tinham

oposto a seu pai, Afonso II.

IANTT, Mitra de Braga,

Cx.1, doc.81; Sousa

Costa, Mestre

Vicente, nota 222-223.

Concertou-se com as suas tias.

 

160v  

1223/06/23

Concórdia de Sancho II com

suas tias.

Sousa Costa, Ibidem,

nota 221.

Liberalidade para com as Ordens da Trindade, S. Domingos e S. Francisco: funda casas a uns e dota outras a outros, em Santarém, Coimbra, Porto, Lisboa e Guimarães.

 

161

 

Não há qualquer prova

documental para esta

prodigalidade (cf. nota 61)

 

Esmolas e dotações de paramentos às Igrejas de Braga, Lisboa, Porto, Coimbra, Lamego, Viseu e Guarda.

Privilégios aos clérigos seculares e regulares e confirmação de anteriores rendas e benefícios.

161

1223/07

 

 

 

 

1223/07

 

 

 

1223/07

 

 

1223/04

 

 

 

1224/06/10

 

 

1224/07/16

 

 

1224/07/25

 

 

 

 

1224/11/16

 

 

1224/12

 

 

 

1225/06/18

 

 

 

1229/01/28

 

 

 

1229/04

 

 

1229/5/2

 

 

 

1236/01/19

 

 

 

1238/05

 

 

 

 

1238/11/26

 

 

 

 

1240/03/29

 

 

 

 

1240/03/30

 

 

 

1240/10/18

(depois de)

 

 

1241/01/20

 

 

 

 

1245/04/30

 

 

 

s.d./06/24

 

 

s.d./07/08

 

 

 

 

 

 

 

s.d.

Isenção de pagamento

de foros sobre Porto de Barca, pelo rei ao Cabido

de Coimbra.

 

Doação do castelo de

Belmonte a Coimbra.

 

 

Protecção dos bens da Igreja,

bispo e cabido de Évora.

 

Doação de dízimos,

portagens e várias  rendas

à Igreja de Évora.

 

Protecção de bens do deão

de Lisboa.

 

Protecção de bens ao

cabido de Lisboa.

 

Carta de protecção ao

Mosteiro de Santa Cruz.

 

 

 

Confirmação de anteriores

doações a Tojos Altos.

 

Carta de couto ao mosteiro

de Tarouquela.

 

 

Carta de protecção ao

mosteiro de Chelas.

 

 

Doação do Couto de S.

Torquato à Colegiada de

Guimarães.

 

Carta de foral de Idanha-a

Nova ao bispo da Guarda.

 

Carta de foral de Salvaterra

do Extremo ao bispo da Guarda.

 

Confirmação de carta de

protecção à Colegiada de

Guimarães.

 

Composição entre o bispo do

Porto e Sancho II, sobre

dízimos e direitos de

portagem.

 

Composição entre Silvestre

Godinho de Braga e

Sancho II sobre direitos

de chancelaria.

 

Composição com o cabido de

Coimbra e o bispo eleito

Tibúrcio sobre dízimos  e

outras questões.

 

Mais determinações sobre

doação dos dízimos a

Coimbra.

 

Doação a João, bispo de

Lisboa, dos dízimos

prometidos pelo seu pai.

 

Doação da Igreja de

Pedrógão a Tibúrcio de

Coimbra.

 

 

Doação do padroado da

Igreja de Avanca ao bispo

do Porto.

 

Confirmação de doações a

Évora.

 

Reposição de situação legal

na Igreja de S. André de

Travassos e S. Eulália de

Gontim, que Afonso II

desrespeitara. Rei

acrescentou doações a

estas igrejas.

 

Doação de dízimas de

Montemór ao bispado de

Évora.

 

IANTT, Sé de

Coimbra, DR,

mç 2, doc. 45

 

 

IANTT, Sé de

Coimbra, DR, mç.

2, docs. 46, 47

 

ACSE, Cabido da

, RR II b)

 

ACSE, Cartulários,

CEC 3-III, doc. 86

 

 

BNL, Inv. Antigo da

Sé de Lisboa, f.113v

 

BNL, Ibidem, f.120v

 

 

IANTT, Mosteiro de

Santa Cruz de

Coimbra, DR, m.2,

doc. 34

 

DSI, doc. 226, III

 

 

João Pedro Ribeiro,

Dissertações

Cronológicas,V,p.177

 

IANTT, Mosteiro de

Chelas, m. 10, doc.

185

 

AMAP, Livro dos

Coutos, f.4

 

 

PMH, Leges, 613,

616

 

PMH, Leges, 618

 

 

 

IANTT, Colegiada de

Guimarães, DR. mç.

1, doc. 7

 

ADPorto, Lºs dos

Originais, Lº VI, ff. 8,

9, 21

 

 

ADBraga, Gaveta 1

das Igrejas, 179;

Sousa Costa, n. 486

 

 

IANTT, Gavetas, IX,

mç. 10, doc. 27

 

 

 

IANTT, Sé de

Coimbra, DR.

Mç. 2, doc. 48

 

BNL, Inventário

Antigo do Cabido,

ff. 191-192

 

IANTT, Sé de

Coimbra, DR.

Mç. 2, doc 49

 

 

ADPorto, Livros de

Originais, Lº 29, f.46

 

 

ACSE, Cartulários,

CEC 3-III, doc. 87

 

ADBraga, Col.

Cronologica, Pasta

3, doc. 107

 

 

 

 

 

ACSE, Cartulários,

CEC 3 – III, doc. 89

 

Alienação de vilas e fortalezas da “real fazenda” para a submeter à jurisdição da Igreja.

 

 

1229/01

 

 

1236/01/03

Doação da Guarda a Mestre

Vicente.

 

Doação da vila da Aceca a

Santa Cruz de Coimbra.

 

IANTT, Gavetas, I,

mç. 2,doc.

 

IANTT, Santa Cruz

de Coimbra, DR.,

mç. 3, doc.1

 

Confirmações aos

cavaleiros de Santiago de

anteriores doações.

 

161

 

 

 

Doação a Santiago dos castelos de Aljustrel, Alfajar de Pena, Mertola, Aiamonte.

 

161

1223/03/31

 

 

1235/10/01

 

 

 

1236/01/19

 

 

1236/02/22

 

 

 

1237/11/04

 

 

 

1239/01/16

 

 

 

1240/05/02

Doação do castelo de

Aljustrel.

 

Doação do padroado das

igrejas de Alcácer e

Palmela a Santiago.

 

Doação de Cezimbra à

ordem de Santiago.

 

Doação do padroado régio

das igrejas de Cezimbra à ordem de Santiago.

 

Doação do padroado das

igrejas de Alcácer, Palmela

e Almada.

 

Doação do castelo de

Mértola à ordem de

Santiago.

 

Doação de Aiamonte à

ordem de Santiago.

 

IANTT, Gavetas, V,

m.1, doc17

 

IANTT, Ordem de

Santiago, DR.

mç.1, doc. 7

 

IANTT,  Gavetas,

mç. 1, doc. 18

 

IANTT, Gavetas, V,

mç. 1, doc 19

 

 

IANTT, Gavetas, V,

mç.1, doc.20

 

 

IANTT, Ordem de

Santiago, DR., mç.

1, doc. 8

 

IANTT, Ordem de

Santiago, DR., mç.

1, doc. 9

 

Doação de Marrachil à

Igreja do Porto.

161

1245/04/27

Doação de Marrachil ao

episcopado do Porto.

 

IANTT, Gavetas, I,

mç. 2, doc. 6

Doação de Arronches a

Santa Cruz de Coimbra.

161

1236/01/07

Doação de Arronches a Santa

Cruz.

 

IANTT, Gavetas, 5,

mç. 1, doc. 18

 

Index d'Auteurs Mots clé Programme