![]() Poetas e Príncipes: algumas considerações acerca de dois epitalâmios dedicados ao casamento de D. Maria de Bragança com Alessandro FarneseVanda AnastácioUniversidade Católica de Lisboa
A 13 Maio de 1565 teve lugar, em Lisboa, o «recebimento» (a que hoje chamaríamos, provavelmente, o casamento por procuração) de D. Maria de Bragança com Alessandro Farnese, Duque de Parma e Piacenza. A simples menção de alguns factos relativos à genealogia dos noivos permitir-nos-á formar uma ideia aproximada dos interesses que se jogaram nesta união. Filha primogénita do Infante D. Duarte (ao tempo já falecido) e de D. Isabel de Bragança, a noiva era neta de D. Manuel I, sobrinha de D. João III e do Cardeal D. Henrique e prima de Filipe II de Espanha. O noivo, Alessandro, era bisneto do Papa Paulo III e filho de Ottavio Farnese e de D. Margarida de Áustria, a qual, por sua vez, era filha natural de Carlos V e meia irmã de Filipe II e, ao tempo, governadora da Flandres[1]. Como se depreende da correspondência preservada sobre o assunto, estiveram directamente envolvidos na negociação do enlace, não só Filipe II e sua irmã, mas, também, o Cardeal D. Henrique, a rainha D. Catarina de Áustria (D. Sebastião tinha apenas 12 anos) e o Cardeal Alessandro Farnese[2]. Da cerimónia do «recebimento» ocorrido em Lisboa existe uma descrição contemporânea, da autoria de Pero de Alcáçova Carneiro[3], que relata o modo como decorreu:
El Rei, nosso Senhor, cavalgou e foi tomar o Embaixador ao cabo do terreiro, ao Arco dos Pegos; foi com El-Rei, nosso Senhor, o Senhor D. Duarte. A Rainha, nossa Senhora, com a Senhora D. Maria e com as Infantes D. Maria e D. Isabel, esperaram El-Rei fora do estrado, na sala grande, e, depois de subidos a ele, se foram à Capela, onde o Bispo, Capelão-Mor, fez o recebimento. Acabado o recebimento, se tornaram Suas Altezas à sala grande e se assentaram em seu estrado, e houve serão, ao qual foi presente a Rainha, Nossa Senhora. Dançou El-Rei, nosso Senhor, com a Senhora D. Maria. Acabado o serão e El-Rei recolhido, o Senhor D. Duarte levou o Embaixador a sua casa e se deceu com ele, e depois se despediu e se tornou à sua.
A crer nestas palavras de Alcáçova Carneiro, tudo se terá passado de modo extremamente simples. Afinal, os festejos matrimoniais propriamente ditos teriam lugar apenas a 11 de Novembro, em Bruxelas, na presença do noivo, ao encontro do qual D. Maria embarcou em Setembro, numa armada comandada pelo Conde de Mansfelt, enviada pela sogra para o efeito. Este relato, puramente factual, de um casamento de conveniência, feito por procuração, entre duas pessoas que nunca se haviam visto, contrasta vivamente com os epitalâmios com que António Ferreira e Pero de Andrade Caminha celebraram a ocasião[4]. Antes de falarmos dos seus textos, talvez valha a pena recordar que as poéticas do Renascimento, inspiradas fundamentalmente na Poética de Aristóteles e na Epistola ad Pisones de Horácio, se centraram quase exclusivamente na teorização da épica e do drama, deixando de lado os géneros líricos. A adaptação destes últimos às literaturas vulgares resultou, em grande medida, da familiaridade que os autores da época foram adquirindo com a lírica da Antiguidade e a sua prática é regulada, acima de tudo, por uma tradição, constituída por um corpus que inclui textos greco-latinos e as suas adaptações modernas, sobretudo as que haviam sido levadas a cabo na área italiana. Uma consequência desta prática é o renovar do interesse pela poesia de circunstância, frequente na Antiguidade. Apesar de ter sido muitas vezes desvalorizada pela crítica literária posterior, que viu nela, sobretudo, a expressão da adulação aos detentores do poder ou o mendigar de favores, a poesia ocasional é extremamente interessante para o investigador, não só pelo facto de aí se multiplicarem as interpretações ficcionadas das ocorrências que refere, como pelo tipo de relação que pretende estabelecer com os poderosos. Postula, no fundo, a existência de um intercâmbio entre aquele que escreve e aqueles que toma como assunto da escrita, uma espécie de pacto implícito, assente numa visão específica da literatura, em que o texto é encarado como um bem de troca, capaz de conceder a fama, tanto aos seus autores, como àqueles que homenageia. Assim, se, por um lado, o poeta pode usar deste «bem» para obter favores ou protecção, por outro, contribui, com o seu poema, para a legitimação dos objectos celebrados. Este modo de ver é especialmente observável na produção dos poetas humanistas que frequentaram as cortes da Renascença nos séculos XIV a XVI, um pouco por toda a Europa, gozando de um estatuto privilegiado junto de príncipes e grandes senhores em troca de promessas de imortalidade. Como sublinhou Costa Ramalho num trabalho célebre, não eram apenas os «aventureiros políticos» e «príncipes de fresca data» a favorecer os literatos dispostos a celebrá-los em verso: «As velhas famílias reais, não eram menos gulosas desta espécie de apoteoses, que tinham a sua tradição na cultura agora rediviva»[5]. Vem a propósito recordar aqui o caso célebre de Angelo Poliziano, que escreveu, em 1491, ao rei D. João II, oferecendo-se para narrar em verso latino as descobertas portuguesas efectuadas durante o seu reinado[6]. A extensa carta de Poliziano e a resposta do monarca português, ilustram bem o tal intercâmbio implícito de que falávamos acima: o poeta propõe-se, com a sua obra, conceder a imortalidade[7] ao Príncipe Perfeito e este, na missiva de resposta em que aceita o oferecimento, vai prometendo recompensas, mostrando-se desejoso de alcançar a glória[8]. Esta carta de D. João II interessa à reflexão que aqui procuramos desenvolver, pelo facto de se referir explicitamente ao modo como se espera que o poeta trate o assunto que se propõe celebrar em verso. Diz-se, com efeito[9]:
«ad te scilicet quam primum deferendi, ut eos iuxta veritatis tenorem, nostram in memoriam ita tuis salibus, & gravitate, doctrinaque respergas, limaque expolias, ut saltem tua conuivante facundia, lectione dignos efficias. Nam multum interest (ut melius nosti) quo dicendi modo unumquodque, licet egregium sit, referatur. Quid quemadmodum usu videmus optimos natura cibos prudenter reiici, cum sordidius parati sint: etiam historiam, quae ornatu suo, ac nitore vacat, contemnendam, reiiciendamque existimamus.»
Sublinha-se, pois, que um dos procedimentos necessários ao bom êxito da poesia que se propõe celebrar um determinado acontecimento é, precisamente, a manipulação da ocorrência por meio do «estilo», destinada a potenciar o seu alcance. Regressemos agora aos epitalâmios de António Ferreira e Pero de Andrade Caminha e observemos como, nos seus poemas, os factos surgem poeticamente idealizados e integrados num discurso no qual se jogam estratégias de legitimação a vários níveis: em primeiro lugar, a nível do próprio texto, pela imitação de modelos prestigiados cuidadosamente escolhidos; depois, a nível da caracterização que propõem do acontecimento em si e das personagens nele envolvidas; por fim, a nível da própria auto-representação do sujeito da escrita, que se institui como porta-voz privilegiado não apenas da ocorrência mas, sobretudo, de um determinado sistema de valores. Vejamos o primeiro aspecto. De que falamos quando nos referimos à imitação de modelos prestigiados cuidadosamente escolhidos? Género de circunstância por excelência, o epitalâmio define-se, essencialmente, pela associação com o casamento, não existindo independentemente de ocasiões deste tipo. Os poetas portugueses quinhentistas redigiram com frequência composições com função epitalâmica: Sá de Miranda e Diogo Bernardes, por exemplo, compõem éclogas que designam como «epitalâmios pastoris»[10], Falcão de Resende é autor de um epitalâmio ao divino celebrando a profissão de uma freira[11] e, os próprios António Ferreira e Pero de Andrade Caminha recorrem a éclogas, odes e epístolas para assinalar esponsais. No entanto, apenas estes dois últimos autores trabalharam o epitalâmio como um género autónomo, associando claramente o evento que comemora a uma estrutura formal determinada. A leitura atenta dos epitalâmios de Ferreira e de Caminha dedicados ao casamento de D. Maria de Parma revela uma proximidade entre as duas composições, que faz pressupor a existência de um modelo comum[12]. Redigidos em ottava rima, ambos apresentam uma extensão considerável, desmesurada quando os comparamos com os textos homólogos contemporâneos que acabámos de mencionar: 48 oitavas (ou 384 versos) no caso de António Ferreira e quase o dobro, ou seja 84 oitavas (690 versos) no de Pero de Andrade. Ambos elaboram narrativas mitológicas protagonizadas por Vénus e Cupido, concluídas por um diálogo entre dois coros. Parecem imitar, de facto, um texto anterior, precisamente da autoria de Angelo Poliziano, o mesmo que se havia dirigido a D. João II quase 100 anos antes. Com efeito, o humanista italiano havia composto, por volta de 1475, uma obra de circunstância destinada a assinalar a vitória, em torneio, de Giuliano Piero di Medici, irmão de Lorenzo o Magnífico, protector do poeta. Conhecida como: «Stanze cominciate per la giostra del Magnifico Giuliano di Piero de Medici», a composição ficou inacabada, mas este facto não impediu que tivesse tido ampla circulação no seu tempo e nos séculos seguintes, e que tenha sido considerada como uma obra prima por várias gerações de leitores[13]. Não se tratando propriamente de um epitalâmio, o texto italiano trabalha o tema do enamoramento, facilmente adaptável à situação matrimonial. Escrito em tom heróico e recorrendo à unidade de composição típica da poesia narrativa, a ottava rima, este longuíssimo texto (171 oitavas, 1368 versos) está dividido em cantos (terminando no início do canto II), abre com uma proposição, uma invocação e uma dedicatória, começa a narrativa in medias res e incorpora fraseologia e imagens retiradas da épica antiga, que faz conviver com a linguagem e a conceptualização do sentimento amoroso petrarquistas, em voga na época. O que contam as «stanze» de Poliziano? Simplesmente, o modo como Cupido conseguiu ferir a Giuliano de Medicis, castigando-o assim pela indiferença que este sempre havia demonstrado pelo amor. A artimanha usada consistiu em fazer com que o príncipe se perdesse durante uma caçada atraindo-o, com a visão de uma corça branca, até uma clareira no bosque, onde foi surpreendido pela presença de Simonetta (a senhora pela qual Giuliano havia justado) apaixonando-se por esta. A narrativa continua com o relato do encontro de Cupido com Vénus, no palácio desta, cuja descrição ocupa a segunda metade do canto I e, no canto II, Cupido conta à mãe como conseguiu que Giuliano se enamorasse. Orgulhosa com a vitória do filho, Vénus regozija-se e inspira um sonho a Giuliano do qual este desperta ansiando pelo Amor e pela Glória, a quem pede que lhe guie as acções. A escolha do poema de Poliziano como modelo suscitava, contudo, o problema de encontrar uma solução para o modo de o concluir. Esta foi encontrada pelo recurso a um epitalâmio antigo célebre: o Carme 62 de Catulo, que termina, precisamente, com um final dialogado entre um coro feminino e um masculino. Este remate em diálogo havia já inspirado um poeta português da geração anterior à de Ferreira e Caminha: Sá de Miranda imitara, com efeito, esta fonte, no final da écloga epitalâmica já citada[14]. Na sua composição, António Ferreira traduz literalmente passagens do Carme 62 e, se no caso de Caminha não podemos falar de tradução, é patente que grande parte dos pontos de vista enunciados na fonte latina permanecem reconhecíveis na sua adaptação. Passemos ao aspecto seguinte, ou seja, observemos de que modo a caracterização do acontecimento em si e das personagens nele envolvidas evidenciam estratégias de legitimação. A narrativa de Ferreira tem lugar na morada de Cupido, descrita como um locus amoenus florido, onde prepara as suas armas. Ao contrário do que se passava no relato de Poliziano, não é Cupido que visita Vénus, mas o contrário. Esta vem ver o filho para o repreender por não ter ainda «ferido» D. Maria. Cupido justifica-se então, dizendo que não havia encontrado até ao momento ninguém que conviesse à Princesa; demorou a encontrar Alessandro mas agora feri-lo-á. Apesar de os noivos nunca se terem visto, Cupido conseguirá que se apaixonem, fazendo chegar a cada um o «nome» e a «fama» do outro, ao mesmo tempo que os atinge com as suas setas. Quando os príncipes cedem à paixão, surge Himeneu, descrito como uma imagem de um livro de emblemas, o facho numa mão, a aliança na outra, para «prender» os amantes. A união é festejada pelos grandes: Ferreira menciona, por esta ordem, o rei, a rainha regente, o Cardeal D. Henrique, o Senhor D. Duarte e dois descendentes da Casa de Aveiro[15]. Depois da intervenção de Himeneu, chega a frota de Vénus, que conduzirá a princesa até junto do esposo, separando-a da mãe e dos seus. No diálogo entre Tritões e Nereidas que serve de conclusão ao poema, estas lembram a dor da mãe da noiva, a pureza de Maria e a inevitabilidade do casamento; ao que aqueles contrapõem a alegria de Alessandro e a protecção que anseia por conceder a sua mulher, formulando votos de larga descendência e felicidade eterna. Todo o texto de Ferreira se encontra permeado de marcas do modo como este autor encara a sociedade do seu tempo. O poeta preocupa-se, por exemplo, em sublinhar a «igualdade» dos esposos, mencionando as suas genealogias e listando antepassados comuns, no intuito de sublinhar que se encontram ao mesmo nível na hierarquia social. Por outro lado, tanto Alessandro Farnese como D. Maria são caracterizados como príncipes exemplares, possuidores das virtudes que lhes preconizavam os tratados que circulavam na época[16]. Algo de semelhante se passa com aqueles que tomaram parte na celebração: o rei é «grande» e tem «o peito aberto ao amor», a rainha «estima a noiva como filha» o Cardeal D. Henrique é um «infante santo», o Senhor D. Duarte e suas irmãs são apoios de D. Sebastião. Não deixa de ser significativa a menção específica dos dois membros da Casa de Aveiro, a quem Ferreira se encontrava ligado por relações de amizade e dependência, uma vez que seu pai se havia contado entre os seus servidores. Observemos agora o epitalâmio de Pero de Andrade Caminha. Tendo vivido toda a sua vida ao serviço da Casa de Bragança e sendo, ao tempo, o Camareiro e homem de confiança do Senhor D. Duarte, irmão da noiva, Pero de Andrade esteve certamente envolvido nos festejos do recebimento de D. Maria e de Alessandro Farnese, de modo particular. O seu poema, tanto pelas dimensões, como pelo modo como se estrutura, pode ser considerado uma obra prima do género na literatura portuguesa. Insistindo no tom heróico, este texto inicia-se com uma proposição (o tema será o poder do amor) e com uma invocação, (ao seu espírito, para que não o abandone na tarefa que se propôs). A narrativa parte da adaptação da sequência de Poliziano em que Cupido visita Vénus, reduzindo, contudo, a longa descrição da morada desta, ao jardim, caracterizado como um símbolo de fecundidade[17]. À imagem da fonte italiana, Cupido conta a sua mãe o modo como fez com que Alessandro e Maria se apaixonassem um pelo outro, neste caso (como em Ferreira) fazendo-lhes chegar a fama das respectivas virtudes e como, depois de muito porfiar, conseguiu vencer a resistência da noiva. Como acontece no poema do autor da Castro, também aqui, no momento em Maria sucumbe a Cupido surge Himeneu, desta vez acompanhado por um séquito de valores morais[18], e «confirma» esse amor. Cupido passa então à descrição dos festejos que assinalaram o enlace, da atmosfera que reinava entre os convivas, e dos príncipes presentes. Por seu lado, Alexandre decidira enviar uma frota com algumas damas ilustres ao encontro de Maria, enquanto os coros de Graças e de Amores cantavam a dor da separação sofrida pela noiva e por sua mãe e faziam votos de felicidade aos noivos. Neste ponto, Cupido é interrompido por Vénus, que se indigna por não ter sido convidada para festa. O filho explica-lhe então que os noivos não estavam juntos. Só agora a sua presença é necessária: deverá dirigir-se a Bruxelas, onde Maria e Alexandre se encontrarão e haverá maiores celebrações. Tal como nos textos de Poliziano e de Ferreira voltamos a encontrar, inevitavelmente, no epitalâmio de Caminha, a definição dos príncipes pela sua genealogia e a valorização do acontecimento celebrado pela listagem daqueles que nele tomaram parte, referidos por uma ordem significativa: assim, Pero de Andrade começa por nomear a destinatária da sua obra poética, D. Francisca de Aragão, antes do rei D. Sebastião, que é apresentado como um «rei milagroso» de quem se esperam grandes feitos[21]. Ao rei segue-se o mecenas do poeta, D. Duarte, irmão da noiva, caracterizado como o súbdito mais fiel de D. Sebastião e o colaborador mais pronto a servi-lo[22]. Por fim, é citada a rainha D. Catarina, ocupada, segundo o texto, na preparação da sua Alma para o Céu e, por último, o Cardeal D. Henrique, de quem se diz que é um «exemplo de letras e de virtude»[23]. Reencontraremos esse mesmo universo superlativo, na enumeração das damas enviadas por Alexandre ao encontro da noiva, na qual, à variedade dos nomes de personagens reais (as damas da Casa de Margarida de Áustria, Oranta Malespina, Antónia Gonzaga, Genebra Aldobrandini, que acompanharam os Condes de Mansfelt[24]) corresponde uma mesma caracterização em termos de raridade e perfeição «quase divina». Por outro lado, são registados para a posteridade alguns pormenores galantes, indiciadores de distinções particulares conferidas por uma personagem ilustre a outra: o rei dançou com a noiva, D. Duarte, mecenas do poeta, dançou com D. Catarina d’Eça, etc. Interessante, neste contexto, é, também, o modo como se descreve Himeneu, que surge como o equivalente do matrimónio cristão: sagrado, «confirma o amor puro e santo» que nasceu nas almas dos príncipes. Realiza a comunhão entre os esposos, reúne «num só cuidado» as suas almas e premeia a moderação e a racionalidade, trazendo consigo «bons Desejos cândidos, modestos» e «contentamentos lícitos e honestos»[25]. Em conclusão: a leitura atenta dos epitalâmios que aqui brevemente referimos parece-nos ilustrar algumas estratégias de legitimação, características da poesia de circunstância. Em primeiro lugar, ao seguir os modelos literários referidos, estes textos reivindicam-se herdeiros de uma tradição de prestígio, evocando três grandes autores de três épocas distintas: Catulo, Angelo Poliziano e Francisco Sá de Miranda. Depois, os factos celebrados nestes poemas são submetidos a essa manipulação por meio do «estilo» e da «lima» de que falava D. João II, de um modo tal, que estes permanecem reconhecíveis, mas são transformados em eventos superlativos, integrados num universo exemplar. Por fim, pelo que revelam desse pacto implícito de que falávamos no início, estabelecido entre os príncipes e os poetas que, tão prontamente, se dispõem a fornecer-lhes imagens optimizadas pelo espelho deformador da Literatura, e a fixá-las para a posteridade: se, por um lado, ao cantar os grandes, o sujeito da escrita «acrescenta» grandeza ao seu verso, por outro, sem a voz do poeta, nenhum assunto parecerá digno de sobreviver ao tempo.
Notas [1] Alexandre Farnese viveu seis anos na corte de Madrid em consequência do Tratado de Gand (1556). Cf. Adriano Freitas de Carvalho, «Uma carta de D. Maria de Portugal, Princesa de Parma e Piacenza», Via Spiritus, 3, 1996, p.263-270. Giuseppe Bertini no trabalho intitulado «Le nozze di Alessandro e Maria e la vita a la corte de Bruxelles», in Nozze di Alessandro Farnese. Feste alle corti di Lisbona e Bruxelles, Milano, Skira editore, 1997, p.27, resume a situação em que se encontravam na época os Duques de Parma e o seu empenho no casamento de Alessandro, do modo seguinte: «Il matrimonio dell’unico figlio Alessandro rappresentava per Ottavio Farnese e Margherita d’Austria un obiettivo primario della loro azione politica. Dopo aver combattuto valorosamente le truppe imperiali del suocero Carlo V, Ottavio, duca di Parma e Piacenza, aveva ottenuto nel 1556, con il trattato di Gand, la restituzione del suo territorio, ma aveva dovuto accettare gravi imposizioni. Alessandro, all’età di undici anni, era stato inviato nei Paesi Bassi alla corte dello zio Filippo II, e lo aveva poi seguito in Spagna, per ricevere una adeguata educazione, in realtà ostaggio per garantire la fedeltà del padre verso la potenza spagnola, egemone nell’Italia del Cinquecento.» [2] O entendimento destas altas personagens a respeito do enlace fica bem patente da leitura das cartas seguintes: «Carta de Frei André da Ínsua a el-rei D. Sebastião» de 1564, «Minuta da carta do Cardial D. Henrique para Fr. André da Ínsua» de 1564, «Carta de Fr. André da Ínsua ao rei Sebastião de Portugal sobre as dificuldades no contrato de casamento de D. Maria com o príncipe de Parma» de 13 de Novembro de 1564, «Carta do Cardeal Farnese à Rainha D. Catarina» de Abril de 1565 reunidas por José Adriano Freitas de Carvalho in D. Maria de Portugal (1538-1577). Princesa de Parma. Monumenta sparsa, Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 1998, bem como do contrato de casamento entre D. Maria e Alessandro Farnese publicado por D. António Caetano de Sousa nas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo II, parte II, p.301-330. Segundo Giuseppe Bertini, Op. cit., p.27, o casamento terá correspondido, sobretudo, aos planos de Filipe II para o sobrinho: «Fu lo stesso re di Spagna ad avanzare nel 1563, quando l’inquietudine di Ottavio e Margherita aveva ormai rragiunto livelli elevati, il progetto di nozze con una sua cugina, Maria di Portogallo, figlia dell’infante D. Duarte, deceduto nel 1540, e di Isabella di Braganza.» [3] Pero de Alcáçova Carneiro, Relações do tempo em que ele e seu pai, António Carneiro, serviram de Secretários (1515-1568), [edição de E. Campos de Andrada], Lisboa, 1937, p.355-357, também reeditado por Adriano Freitas de Carvalho, op. cit. Por sua vez, Pero Roiz Soares inclui no seu Memorial um «Capitulo primeiro de como a señora dona Maria filha da Infante dona Isabel foi para Parma», Coimbra, 1953. Conhecemos ainda a descrição contemporânea, não só do «recebimento» de Lisboa mas, também, da viagem de D. Maria e da boda realizada em Bruxelas da autoria de Francesco de Marchi, Narratione particolare delle gran feste e trionfi fatti in Portogallo e in Fiandra nello sposalitio dell’Illustrissimo et Eccellentissimo Signore, il Signor Alessandro Farnese, Prencipe di Parma e Piacenza, e la Serenissima Donna Maria di Portogallo, Bologna, Alessandro Benacci, 1566. Esta Narratione foi parcialmente traduzida por Aníbal Fernandes Tomás, Cartas Bibliographicas, Coimbra, 1877. Também se encontram referências à viagem e à boda entre a correspondência de De Marchi publicada por A. Ronchini, Cento lettere del capitano Francesco de Marchi bolognese conservate nell’Archivio Governativo di Parma e ora per la prima volta recate in luce, Parma, 1864. Relato contemporâneo do acontecimento é também o de Bordey, publicado por A. Castan, Les noces d’Alessandro Farnese et de Marie de Portugal. Narration faite au cardinal Granvelle par son cousin germain Pierre Bordey, Bruxelles, 1888. Para além destas descrições, contemporâneas do acontecimento, existe um relato do recebimento de Lisboa, com referência à decoração dos ambientes, vestuário das personagens, alimentos, etc., redigida, quase dois séculos mais tarde, por Diogo Barbosa Machado: «Desposório da Serenissima Senhora D. Maria, com o Príncipe de Parma Alexandre Farnesio e das festas com que foi solenizado.» in Memórias para a História de Portugal que comprehendem o governo del Rey D. Sebastião, t. II, Lisboa, 1737, Cap. XIII (também reeditada por Freitas de Carvalho, idem.) [4] Conhecemos ainda outros epitalâmios dedicados à mesma ocasião, mas encontram-se em latim e seguem outros modelos de inspiração: um texto da autoria de Diogo de Teive, impresso na obra Epodon sive Jambicorum Carminum Libri tres, Lisboa, 1565, II, fol. 41r-49v, reeditado por José Adriano de Carvalho, D. Maria de Portugal (1538-1577). Princesa de Parma. Monumenta sparsa, op. cit., e dois textos publicados conjuntamente, compostos por Nicolas Mamer e por seu filho Pierre Mamer, com o título Epithalamia duo Illustrissimi Domini Alexandri Farnesii Principis Parmae ac Placentiae etc. et Illustrissimae Dominae Mariae a Portugallia, Catholici Regis Hispaniarum Philippi consobrinae, Antuerpiae [C. Plantino], 1566. [5] Américo da Costa Ramalho, «D. Diogo de Sousa e o introdutor do Humanismo em Portugal» Estudos sobre a Época do Renascimento, Coimbra, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1969, p.83-105. [6] Conhecem-se diversas publicações desta carta de Angelo Poliziano e da resposta correspondente, inventariadas por Fidelino de Figueiredo, A Épica Portuguesa no Século XVI, Lisboa, INCM, 1987 [reprodução da edição de São Paulo, 1950]. [7] Eis as suas palavras: «Nempe ut rogem non soeculi modo istius, sed omnis etiam posteritatis, omnium gentium verbis, ne perire rerum tantarum, neve intercidere consecrandam scilicet aeternitati memoriam patiaris, quin ferrea doctorum hominum, atque adamantina potius signari iubeas voce, quae nec aevi quidem tacite se volventis edaci dente consumitur.» ou seja, na tradução do Pe Francisco Rodrigues publicada por Fidelino de Figueiredo, op. cit., p.99-105: «Quero suplicar-te em nome não somente deste século, mas também de todas as nações, que não consintas venha a perecer ou apagar-se a memória de tão grandes obras, que se deve guardar para a eternidade, mas ordenes se perpetue na voz férrea ou antes diamantina dos homens doutos, a qual nem a acção roedora do tempo no seu rodar silencioso chega jamais a consumir [...]». [8] Vejam-se as afirmações seguintes, idem, p.97: «Pro quibus magnas tibi habemus gratias, quas dum tempus & res exegerint, cumulatiores referemus, speramusque tuae erga nos affectionis te non poenitere. Et ut tibi brevibus ad propositum respondeamus, scias nos tui officii, & pii laboris, quem in nostrae mortalitatis redemptionem tam crebro polliceris Esse admodum gratos, idque amplectimur, vehementerque laudamus» ou seja, em tradução para português, pelo mesmo Pe Francisco Rodrigues, publicada por Fidelino de Figueiredo, p.105: «Por eles te estamos intimamente agradecidos; e, quando o tempo e as circunstâncias o pedirem, com avantajadas recompensas te provaremos nosso reconhecimento, esperando entanto que não te hás-de arrepender da afeição que nos dedicas. E para te responder em poucas palavras ao propósito, sabe que nos é muito agradável o teu obséquio e amoroso trabalho, que tantas vezes promettes para resgate de nossa imortalidade, e que o aceitamos e calorosamente louvamos.» [9] Fidelino de Figueiredo, idem, p.97. Eis a tradução do Pe Francisco Rodrigues, idem, p.105: «Tu depois, consoante as exigências da verdade, em memória nossa lhes lançarás [aos factos, entenda-se] tuas elegâncias, gravidade e doutrina e os limarás com esmero para que, pelo menos com benefício de tua facúndia, os tornes dignos de serem lidos. Pois, como tu sabes melhor, muito importa o estilo com que se refere qualquer feito por ilustre que seja. Assim como vemos por experiência que se rejeitam com razão os alimentos por sua natureza muito bons, se vêm preparados com menos limpeza, assim também julgamos que se há-de ter em pouco e rejeitar a história, a que falta sua belleza própria e elegância.» [10] Referimo-nos à écloga IX de Sá de Miranda, «Epitalâmio Pastoril», dedicado ao casamento de D. Camila de Sá e à écloga VIII «Joana» de Diogo Bernardes. [11] Referimo-nos ao texto: «Epithalamio na profissão de D. Joana Loba sobrinha da Prioresa do mosteiro da Anunciada a qual fez dia dos Apostolos S. Pedro e S. Paulo, a 29 de Junho do ano de 1586» in André Falcão de Resende, Trovas, edição inacabada da Imprensa da Universidade de Coimbra, s/d, p.395-396. [12] Veja-se, a este propósito Vanda Anastácio, «Os epitalâmios» in Visões de Glória (Uma introdução à poesia de Pero de Andrade Caminha), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p.157-169. [13] Recordamos aqui a observação de Enrico Carrara, no artigo «Agnolo Poliziano» Enciclopedia Italiana di scienze, lettere ed arti, Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana fondata da Giovani Trecanni, 1935-43, vol. 27, p.691: «[...] le edizioni settecentesche recavano nel titolo Le elegantissime Stanze per la giostra. Più che un titolo era un giudizio.» [14] O poema epitalâmico de Sá de Miranda termina, com efeito, com um diálogo entre «zagalas» e «zagales» em décimas decassílabas. Cf. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Poesias de Sá de Miranda, Halle, Max Niemeyer, 1885 [existe uma edição fac-similada de Lisboa, INCM, 1989]. [15] Segundo Thomas Earle, tratar-se-ia de D. Jorge de Lencastre e de D. Pedro Dinis, filhos do Duque de Aveiro in António Ferreira (2000), Poemas Lusitanos, edição de Thomas Earle, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p.568. [16] Vejam-se a este respeito as obras de Nair de Nazaré Castro Soares, O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1994 e de Ana Isabel Buescu, Imagens do Príncipe: discurso normativo e representação (1525-49), Lisboa, Cosmos, 1996, bem como os trabalhos de Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias. Casamento e Espiritualidade na Península Ibérica (1450-1700), Porto, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, bem como: «A Vida de D. Maria de Portugal, Princesa de Parma: do texto ao comentário», D. Maria de Portugal Princesa de Parma (1565-1577) e o seu Tempo. As relações entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, Instituto de Cultura Portuguesa, 1999, p.155-182. [17] Leiam-se, por exemplo, na oitava 11, os versos 81-88: «Enquanto ali as árvores florecem / Com cuidado são vistas e tratadas, / S’acontece secar, e reverdecem / Não as deixam de todo desprezadas. / mas se co tempo secam e se murchecem / Logo deste jardim são arrancadas, / Que no jardim de Vénus não é olhada / Árvore de que não s’espere nada.» [18] Na oitava 37, vv. 289-296 diz-se, com efeito, que Himeneu tem no seu séquito, entre outras personificações alegóricas, a «Virtude», a «Verdade», a «Concórdia», a «Paz», a «Igualdade» e a «Fé». [19] Vejam-se as oitavas 19, vv. 151-152 e 20, vv. 153-160. [20] O poeta escreve, com efeito, vv. 281-284: «Razão venceo, não fogo, seta, ou tiro, / Que só Razão a tais espritos guia, / Sem ela em vão num’Alma entro e suspiro / S’ela tem a Virtude só por guia.» e, mais adiante, nos vv. 529-531: «Houve enfim com razão de ser vencida / Da justa obediência que a obrigava, / E do amor daquel’Alma já afligida / Porquanto este seu bem já lhe tardava.» [21] Diz-se, com efeito, nos vv. 361-362: «Dele s’esperam milagrosos feitos / Que milagres lh’está o Céo prometendo.» [22] Nos versos 369-376 lê-se, com efeito: «I-lo-á seguindo em tudo o seu Duarte / (Como quem o que deve em tudo guarda) / E a suas Insígnias reais, seu Estandarte/ Que já pronto e alegre ânimo aguarda: / Com prudência, e conselho, esforço, e arte,/ Mas já esta glória a seu esprito tarda. / E então dele será bem conhecido / Quanto pode de Duarte ser servido.» [23] Leiam-se os versos 393-396: «Aí do grande Henrique claro Infante / De letras e Virtude exemplo raro: / D’esprito em todo bem firme e constante / De peito na verdade aberto e claro / etc.» [24] Cf. Giuseppe Bertini, op. cit. [25] Vejam-se os versos 289-296: «Acudio logo ali Himeneo sagrado / A confirmar este amor puro e santo: / De Virtude, e Verdade acompanhado: / De concórdia, de Paz, de Riso e Canto: / D’Igualdade, e de Fé, e Amor trocado: / Dum Cuidado em duas Almas sem espanto / De bons Desejos, cândidos, modestos: / Contentamentos lícitos e honestos» [26] Estamos gratos ao Dr. Luís Farinha Franco por nos ter informado da existência deste texto. ![]() | |||||||
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