Tópicos de legitimação das línguas-culturas: o caso brasileiroUniversidade Aberta
A expressão “língua companheira do império” foi usada ao longo da história para servir diferentes estratégias de legitimação próprias de cada tempo e por essa razão foi adquirindo novas tonalidades e novos sentidos conforme as circunstâncias se iam alterando. Este estudo pretende verificar as suas reminiscências visíveis no contexto da afirmação da cultura brasileira. As investigações de Eugenio Asensio (1974), ao retomarem os estudos de Menéndez Pidal na referência aos autores que convertem esta máxima numa importante fórmula de intervenção, demonstram que, embora ela possa ser muito anterior, é no período renascentista que adquiriu uma especial relevância. A conjuntura histórica da Renascença pode explicar tal facto. Não só a ideia de Império estava muito presente em certas ambições expansionistas ibéricas como o projecto de unificação dos reinos de Castela e Aragão dava pertinência à expressão no âmbito de determinadas estratégias sócio-políticas. De facto, esta ideia atravessa toda a história da Europa e justifica várias tentativas de expansão e edificação de hegemonias políticas, chegando a sobreviver depois da formulação do Estado Clássico atingida no final do séc. XVII. Ora é certo que este contexto não é exactamente o do movimento das nacionalidades do séc. XIX que, sendo expressão de uma identidade com um manancial ideológico comum, se verificou na Europa como também no Brasil com a independência em 1822. Trata-se, com efeito, de um período no qual se desenvolve até meados do séc. XX uma “teoria da vernaculidade” (tomamos a expressão de Telmo Verdelho) no qual a língua se torna um valor nacional e de estado:
A vernaculidade é, ao longo do séc. XIX, um conceito essencialmente literário ou paraliterário e consiste na valorização da memória textual impressa como um imaginário simbólico de referência [...] Por outro lado, começa a compreender-se que a língua é um instrumento de cidadania, um objecto pragmático cívico-político [...]. O novo ideal político, que é o da felicidade geral pode e deve ser servido pela língua, sobretudo adaptando-a como instrumento da doutrinação política, mas também como objecto da criação literária - a mais elaborada forma de fruição colectiva. (Verdelho, 1999: 111)
Sujeita a várias retóricas e significados particulares ligados a diferentes contextos e épocas, evidenciando bem a construção cultural, simultaneamente social e textual, a língua é factor de identificação e confirmação da nacionalidade e objecto de defesa e louvor na tradição humanista. Esta tradição é visível em formulações mais recentes como na famosa frase de Pessoa (Bernardo Soares) “a minha pátria é a língua portuguesa” ou na seguinte afirmação que Camilo Castelo Branco coloca na boca de um personagem: “Eu serei voluntariamente natural de toda a parte onde encontre irmãos que falem a minha língua” (1971: 96-7). Por essa razão, antes de recolhermos algumas coordenadas de apreensão da realidade cultural brasileira, será interessante revermos as principais linhas de argumentação do pensamento metalinguístico com incidência documentada no séc. XVI. Segundo Asensio, o humanista italiano Lorenzo Valla usa a expressão “lengua compañera del imperio” com a intenção de desvalorizar a acção política e militar em face das letras e da cultura. Perante o desmonoramento do império romano a nível político, seria a cultura veiculada pela língua latina a perpetuar e a eternizar a história (cf. Asensio, 1974: 2-3). Mas continuemos a seguir o relato de Asensio sobre a evolução que a expressão toma. Mais tarde, e de acordo com o relato deste investigador, o jurisconsulto do rei católico Fernando, Mister Gonçalo, em face da necessidade de unificação política de dois reinos com duas línguas diferenciadas, Castela e Aragão, defende a prevalência da língua castelhana com o argumento de a corte ter assento em Castela. Notemos parenteticamente que, se isto pressupõe a identificação da unidade política com a unidade linguística, o que podemos constatar é uma espécie de inversão da posição anterior, já que se defende dever a língua ser conformada aos factos políticos que deverão determiná-la, enquanto que para Vala estes passam para segundo plano perante a força cultural de uma língua e uma civilização. Em Nebrija, a língua surge como um instrumento político e cultural face às ambições da expansão espanhola e é essa concepção que está na base da referida frase, usada na dedicatória prólogo da sua Gramática Castellana de 1492 e tão do agrado dos filólogos renascentistas. É importante notar nesta altura a secundarização do latim que deixa de ser um instrumento pedagógico central[1]. Em 1536, já ultrapassado o contexto da expansão, por ocasião da publicação da Gramática da Linguagem Portuguesa, Fernão de Oliveira acentua a missionação para além do valor político da língua. Língua e doutrina são os símbolos da coesão do Império que se manterá vivo na medida em que os difundir aos povos submetidos. Os pormenores que Asensio nos fornece da posição de Oliveira não deixam de ser curiosos. Asensio nota a substituição do tom bélico de Nebrija pelo tom evangélico de Fernão de Oliveira, mas não deixa de lhe reprovar a ideia central de que a mudança linguística era um mecanismo de corrupção da língua. Em contrapartida, elogia o facto de Nebrija conceber a língua como criatura orgânica, ligada à vida e morte dos impérios e à qual a gramática dá em dado momento uma estabilidade paradoxal. Nesta concepção, Asensio está de acordo com a generalidade das correntes linguísticas do séc. XX e daí deriva a sua atitude crítica em relação a Oliveira que, no seu entender, padece de excesso de preconceitos, embora derivados de uma atitude positiva: “Sus negaciones arrancan de la más positiva de las actitudes: el amor a la lengua de su patria y la decisión de estudiarla no como vago remedo de la latinidad, [...] sino como creación original del genio patrio” (Asensio,1974:13). Esta devoção pelo património linguístico seria continuada por Bento Pereira e D. Francisco Manuel de Melo, respectivamente com O Tesouro da Língua Portuguesa e o Hospital das Letras e foi estando cada vez mais ligada ao património literário com as fixações canónicas que a Academia Real das Ciências foi promovendo nos finais do séc. XVIII. Embora o combate a estrangeirismos seja um dos ingredientes típicos de uma concepção gramatical rígida, se Oliveira concebe a língua como espelho da nacionalidade, ao defender a língua contra a cultura estrangeirada, entende assim defender a nação. Já João de Barros, ao mostrar também a finalidade de difusão do cristianismo no Portugal de D. João III, vê com valor positivo o intercâmbio cultural, pelo que aceita os neologismos vindos do Ultramar. Dentro do pensamento linguístico normativo da época, visível no fervor censório com que se pretende preservar um valor patrimonial, Barros demonstra uma abertura inovadora ao defender o enriquecimento da língua, mais do que a sua legitimidade purista. Asensio, que tanto sublinha a proposta revolucionária de Nebrija a favor do espanhol em detrimento do latim, não dá talvez o devido relevo a esta posição. Apesar da distância histórica e geográfica, algumas destas noções são retomadas no Brasil na sua estratégia de identificação cultural. Se substituirmos “império” por “território” ou “pátria”, palavras mais adequadas ao contexto histórico da formação cultural brasileira, vemos que a mesma ligação tradicional se mantém:
Foi o milagre da língua e não a religião - então repartida entre cristãos, ateus, judeus, hugenotes, protestantes holandeses, diversidade religiosa que subsistiu por tempo imemorial até dentro da nova nação, quando já independente - que garantiu nossa integridade territorial. [...] Esta só “ganhava sentido nacionalizante quando vinha expressa nas ladainhas e nos cânticos” Foi esta - prodigioso milagre! - a defesa das nossas fronteiras, pois, onde ela era falada, morria a pressão do cerco castelhano como se os tesouros que nos legaram Camões e Gonçalves Dias fossem uma intransponível barreira velando pela integridade territorial e cultural de uma pátria. (Picchia, 1986: 168)
O discurso de afirmação da cultura brasileira constitui um caso particularmente interessante a vários níveis. Não só porque a cultura brasileira mostra, porventura como nenhuma outra, uma preocupação pela auto-legitimação como ainda apresenta aspectos bastante complexos. Como criações essencialmente do séc. XIX, apesar das suas raízes históricas anteriores no caso europeu, as culturas nacionais passam por um processo de diferenciação face ao exterior e pela promoção da homogeneidade no interior do território nacional[2]. Ora, estando o nacionalismo cultural ligado ao nacionalismo linguístico e um dos modos de as sociedades defenderem a língua é recitarem a literatura, uma das dificuldades consiste em não se poder estabelecer uma relação unívoca entre língua e nação e a consagração literária no Brasil depender do compromisso com a língua portuguesa. O facto de a língua não poder contribuir para a definição do estatuto identitário da cultura brasileira resultou na procura de outras vias, nomeadamente na capacidade de nativização do alheio, o que traz outras dificuldades acrescidas. Uma delas advém de a identidade brasileira se auto-conceber como multiculturalidade. Os autores do movimento artístico denominado Antropofagia têm plena consciência deste facto ao mostrarem um Brasil desprovido de essência étnica ou nacional, aberto à alteridade. Isto é o que constata Leyla Perrone-Moisés:
O projecto de Mário de Andrade implicava a criação de uma língua literária brasileira, composta de regionalismos, arcaísmos, palavras eruditas, coloquiais, índias, africanas e estrangeiras. (Perrone-Moisés, 2000: 219)
Acrescente-se que o lugar da literatura, enquanto conceito criado no séc. XIX juntamente com a ideia de uma literatura nacional, é paradoxal: a literatura tem de marcar uma diferença e construir uma identidade mas não pode deixar de aspirar à universalidade. A frase “tupi or not tupi that is the question”, pertencente a um dos manifestos do Modernismo brasileiro, traduz a hesitação entre essa aspiração e a viragem para os mitos do nacionalismo. Todos estes pontos nevrálgicos faziam parte da discussão, iniciada no Romantismo, que reunia a questão da língua, do valor literário e da nacionalidade. Entre os que punham em causa a existência real da literatura brasileira pela razão de o português do Brasil não ser diferente do de Portugal (este é um argumento que pressupõe a forte ligação da língua e do território e destes à cultura ou por outras palavras, a língua é fundamento da memória literária e ambas são valores ligados à nacionalidade) e entre os que achavam que o factor língua não seria tão determinante na definição de uma literatura nacional, neste caso atribuindo mais importância à presença de motivos e de temas específicos do Brasil e à história do seu povo, havia quem, como Alencar, buscasse a legitimação da literatura brasileira nas línguas indígenas. No seu entender, estas seriam o melhor critério para a nacionalidade da literatura e seria nessa fonte que deveria beber o poeta brasileiro (Alencar, 1994: 98-99). Nesta linha de argumentação, a língua tupi é fundamental na afirmação de uma literatura nacional e não apenas um mero acessório como para o português Pinheiro Chagas (1994: 137). Sem dar a devida importância ao uso de termos indígenas pelos escritores do Brasil, o que este critica sobretudo é a falta de correcção linguística, apesar de entender que a inspiração para dar “originalidade e seiva” à literatura americana estaria na poesia dos povos primitivos, o que, segundo Chagas, Alencar teria compreendido, já que o seu romance Iracema estaria destinado “a lançar no Brasil as bases de uma literatura verdadeiramente nacional” (Chagas, 1994: 143). Gonçalves Dias é um outro autor do período romântico que procura demarcar a língua literária do Brasil da de Portugal, através da contribuição africana e de elementos de origem tupi:
Bom ou mau grado, a língua tupi lançou profundíssimas raízes no português que falamos, e nós não podemos, nem devemos atirá-los para um canto a pretexto de que a outros parecem bárbaros ou mal soantes. Contra isso protestaria a nossa Flora, a nossa Zoologia, a nossa Topografia. Clássico ou não clássico - Pernambuco é Pernambuco, cajá, paca e outros semelhantes, não têm outro nome. Se isso desagrada a Portugal, é grande pena, mas não tem remédio. (Dias, 1959: 825)
Uma temática brasileira apoiada por um léxico novo era, ao contrário do que afirma, aceite pelos intelectuais portugueses. O que estes já tinham relutância em admitir era uma nova sintaxe e uma nova prosódia. À semelhança de Herculano quando reprova a Gonçalves Dias as imperfeições na língua, também Pinheiro Chagas reforça esta ideia ao comentar o uso de palavras indígenas em Iracema:
[...] em nada prejudicam o interesse do livro, por serem designação de plantas americanas ou de objectos de uso dos indígenas [...] o defeito que vejo em todos os livros brasileiros, e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente, é a falta de correcção na linguagem portuguesa, ou antes a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português. [...] Se os escritores brasileiros desejam realmente fazer uma língua nova, corrompendo a antiga, como as línguas modernas da Europa se formaram da corrupção do latim, devemos adverti-los que isso não prova senão o desprezo das regras mais elementares da filologia. [...] Essa transformação pô-la Deus nas mãos do ignorante. (Chagas, 1994: 142)
Este tipo de objecção, à qual subjaz uma teoria da língua só mais tarde modificada por Benveniste, é, de resto, comum aos próprios brasileiros. O pernambucano Franklin Távora condena neste romance de Alencar a “expressão de flacidez, de langor” (1994: 147), justificando mais adiante:
Só duas fontes vejo onde o poeta achasse para beber o carácter da poesia brasileira, a saber: espécimens na própria língua vernácula, ou, na falta destes, o dizer dos historiadores. Ora, a primeira é sabido que nos falta, não só os índios não escreviam, mas também quem o podia fazer “não se deu ao trabalho de recolher ou verter em língua portuguesa os cânticos dos índios”, como diz um literato contemporâneo. Resta, portanto, a segunda, que, longe de autorizar, condena a pretensa escola, inaugurada por J. de Alencar. (Távora, 1994: 147)
Trata-se aqui do mesmo pensamento da vernaculidade, uma “verdadeira ideologia linguística que vai acompanhar o discurso metaliterário até ao meio do séc. XX” (Verdelho, 1999: 110). O que ressalta da posição de Távora é a condenação de uma excessiva liberdade face ao dicionário, para além da preocupação com a feição que a literatura deveria tomar perante a consciência da nacionalidade e da necessidade de defesa do idioma. Se Telmo Verdelho, a quem já nos referimos, nos apresenta todo um conjunto de argumentos para a devoção portuguesa em relação ao património linguístico-literário, também é certo que do lado brasileiro havia razões conhecidas para que este conservadorismo se verificasse como, por exemplo, o interesse económico de revistas, jornais e editores que optavam pelo aportuguesamento com medo de reacções do público e a ambição de alguns escritores de serem lidos e comprados em Portugal. Jorge de Sena é categórico em atribuir ao próprio “establishment” brasileiro um conceito de língua conservador:
[...] se as colunas jornalísticas do Figueiredo sobre o bem escrever apareciam dando sentença nos jornais do Brasil, e, se no Brasil eram publicadas, não era porque o Figueiredo mandasse no Brasil, mas porque os brasileiros que o publicavam assim desejavam que fosse. O chamado “ensino” não era, e não foi, uma conspiração portuguesa, mas sim, pura e simplesmente, uma pedantaria brasileira que ainda hoje se reflecte no estilo empolado e “luso” da retórica patriótica, política, ou de sobremesa de banquetes no Brasil. De tal fobia os brasileiros não podem culpar-se senão a si mesmos [...]. (Sena, 1988: 360-1)
Nesta ironia está explícito como a legitimação linguística passa por necessidades de ensino e solicitações sociopolíticas da palavra, o que não difere do que se passava em Portugal e que se reflectia no mesmo espírito de censura. Esta intenção ideológica pode notar-se desde o Arcadismo brasileiro do século XVIII até às correntes literárias do século XIX e consiste em considerar a língua portuguesa dos clássicos como indispensável à dignidade da cultura, mesmo tendo em conta a especificidade da literatura brasileira. A chamada trindade parnasiana brasileira, constituída por Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, procura uma poesia de apurado domínio do verso tradicional. A mesma ideologia está subjacente ao que Mário de Andrade chama o acobardamento dos escritores brasileiros logo que se tornam mais cultos, incapazes de fazer sentir na língua escrita as diferenças nacionais (cf. Andrade, 1986: 121), até com prejuízo da própria literatura: “nos românticos chegou-se a um ‘esquecimento’ da gramática portuguesa, que permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e sua expressão verbal” (id: 125). As lições de vernaculidade de Pinheiro Chagas ou Eça de Queirós foram bem apreendidas do outro lado, pois a superação da gramática poderia ser confundida com a ignorância dela. Seja como for, Alencar, autor dos romances talvez mais lidos no Brasil, teve um papel fundamental na clarificação do problema com influência nas fases posteriores, quer de apogeu quer de contestação do vernaculismo. Alencar reivindica o direito ao uso literário do falar brasileiro, evidenciando como a questão da língua era inseparável da questão da literatura. A reclamação do direito à diferença linguística era também a reclamação do direito à diferença literária[3]. Por outras palavras, as aquisições linguísticas tornam-se marca da identidade literária. Com isto ele abriu caminho aos modernistas de 1922 para que eles pudessem escrever numa língua liberta do purismo e mais comprometida com a fala comum na qual modalidades europeias poderiam misturar-se com as de origem americana e africana. É significativo que a maior insubordinação gramatical fosse mais sensível nos poetas de S. Paulo, onde ocorreram os acontecimentos ligados à Semana de Arte Moderna. Este programa é expresso por Oswald de Andrade no “Manifesto Poesia Pau-Brasil”: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (Andrade, 1995: 414). Também Mário de Andrade abandona um nível de língua que sabia escrever bem para explorar o nível popular. O que o Modernismo inventou foi um novo padrão literário a partir de novos aproveitamentos linguísticos, fazendo entrar na sua literatura a língua falada e popular do Brasil, o que tornava subitamente velha uma literatura que usava uma língua livresca. É isto que Oswald de Andrade quer mostrar com o seguinte poema paródia:
Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro (Andrade, 1990: 120)
Há neste aspecto, de resto, uma convergência entre os modernistas brasileiros e portugueses: embora estes não se debatessem com problemas gramaticais ou filológicos nem com questões de nacionalismo linguístico, pode notar-se a mesma revitalização do idioma pelo compromisso com a oralidade ou pela renovação e dinamismo das estruturas gramaticais. De um modo geral, no Modernismo o pensamento metalinguístico normativo sofre um clímax de ruptura, em que a par da exploração de todos os recursos de criatividade e enriquecimento da língua se dá também a vontade de transgressão. Ao mesmo tempo, a velha máxima da “língua companheira do império” é retomada em moldes que demonstram intenções não tanto de ordem artística como de natureza política e social. Vai nessa linha o empenho de muitos autores em abrasileirar o Brasil e em libertar-se da “tirania” da língua literária portuguesa. A política editorial da revista Brazileia (1917), ao apostar no nativismo, no nacionalismo e antilusitanismo, demonstra isto mesmo. A oscilação das designações propostas para a variante do português no Brasil revela também uma polémica, não apenas de natureza gramatical e, talvez por isso, não escapa a uma certa falta de clareza: dialecto brasileiro, dialecto luso-brasileiro, co-dialecto, falar brasileiro, falares brasileiros, novo idioma, português americano, língua nacional, etc. Pelo exposto, não é despropositado estabelecer um paralelo entre o séc. XVI, durante o qual, até pelo confronto com outros espaços, os espaços europeus buscam uma especificidade que se projecta nas gramáticas de língua. Neste sentido, é importante referir que as investigações sobre a “língua brasileira” tivessem sido um resultado da procura da radicação à pátria que ocorreu especialmente durante o Modernismo e da qual os movimentos literários como, por exemplo, o Verde-Amarelismo e a Anta, são expressão. Mas não é tanto isto que importa acentuar como o facto de, neste caso, a língua advir um lugar de tensão e atritos, no qual é sensível o tom bélico outrora usado por Nebrija. Perante as ondas lusófobas de que nos dá conta Arnaldo Saraiva, e que motivam expressões como “Portugal não é uma nação. Portugal é uma doença”, “o Brasil, enquanto for português, (como desgraçadamente é) nunca será uma nação” ou “o nosso país tem de optar: ou desaportuguesar-se ou desaparecer” (Saraiva, 1986: 83-84), não podemos deixar de relembrar as palavras de Casais Monteiro quando, rejeitando o nacionalismo literário com base no princípio de que não existem literaturas autónomas ou auto-suficientes, sublinha os efeitos negativos de associar a literatura à nacionalidade, em particular o perigo da demagogia (cf. Monteiro, 1960). Ao mesmo tempo, a noção de Barros de enriquecimento da língua está muito presente, embora em novos moldes. Não é apenas questão de ampliar a língua com contribuições de outras culturas - embora também disso se trate, conforme a frase “o Brasil amanheceu Portugal na América” de Menotti del Picchia deixa transparecer (Picchia, 1986: 167) - mas também de a enriquecer através da exploração literária de diferentes níveis de língua. Os modernistas brasileiros, que, de um modo geral, não eram lusófobos, encontraram uma legitimidade alargada aos diversos usos e registos da língua, desde o culto ao popular, segundo critérios estéticos que se tornaram preponderantes. Quer os autores que, como Oswald de Andrade, rejeitavam a memória cultural indo no sentido das vanguardas, quer os que, como Manuel Bandeira, a recriaram[4],s tinham plena consciência do papel da literatura na criação e adopção dos usos da língua. São critérios estéticos que fazem com que Manuel Bandeira proclame o uso de barbarismos e de sintaxes de excepção e tivesse escrito o “Dialecto brasileiro” para irritar os puristas: “’Não há nada mais gostoso do que ‘mim’ sujeito de verbo no infinitivo: ‘Pra mim brincar’. As cariocas que não sabem gramática falam assim. Todos os brasileiros deviam de querer falar como as cariocas que não sabem gramática.” (Bandeira, 1984: 92-3). São os mesmos critérios estéticos que fazem com que, por outro lado, considere a sintaxe dos clássicos portugueses “muito mais rica, mais ágil, mais matizada do que a moderna, sobretudo a moderna do Brasil” e portanto, muito mais adequada para traduzir do inglês ou do alemão (id: 95-6). A Manuel Bandeira sempre “agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente selecto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão” (id: 101), por isso traduz para moderno, mais propriamente para “cafageste” o seguinte poema de Castro Alves:
Mulher, irmã, escuta-me: não ames. Quando a teus pés um homem terno e curvo Jurar amor, chorar pranto de sangue, Não creias, não mulher: ele te engana! As lágrimas são galas da mentira E o juramento manto da perfídia. (id.: 94)
Eis o texto de Bandeira:
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele se ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de cinema É tapeação Mentira CAI FORA (ibid.)
Isto não o impede de escrever em galaico-português[5] e reprovar a Gonçalves Dias “o brasileiro de fala mole” a propósito da intercalação de vogais num grupo de consoantes, por exemplo, em “iguinóbil”, o que faz com que mais uma sílaba seja contada na medida do verso. A regulação linguística é agora subordinada à veracidade da experiência estética, em que tanto o desmazelo como a afectação são condenados. Por isso o património linguístico e literário é concebido como um património mnemónico da personalidade, ou ainda quando revela a interiorização da poesia da ausência no seguinte poema:
Saudade cheia de graça Alegria em dor difusa doença da minha raça em seu auxílio verteu.
Ah! quem sentir-te não há-de se foi dentro da saudade que a minha pátria nasceu. (Picchia, 1986: 169)
Notas [1] La revolutión de Nebrija consistirá en invertir esta posición dominante, gracias a la pedagogia, de la lengua latina, enseñar el castelhano por razón e por arte en los comienzos, restableciendo el natural progreso de lo sencillo a lo difícil (Asensio, 1974: 7). [2] Segundo Boaventura de Sousa Santos, o papel do Estado incide nesta dupla tarefa, uma vez que as culturas nacionais são um produto histórico da tensão entre universalismo e particularismo gerido pelo Estado (cf. Santos, 1994: 132-3) [3] Segundo nos informa Mário de Andrade, do lado português terá sido José Osório de Oliveira o primeiro a conceber a literatura brasileira como uma entidade independente e que por causa dessa concepção, pôde aceitar “as mudanças legítimas que, mesmo em nossa língua escrita e literária, estavam se processando no português do Brasil” (Andrade, 1986: 120). [4] Para a presença de autores portugueses na poesia de Bandeira, ver Bernardinelli (1989) ou para a relação de Bandeira com a gramática portuguesa, ver, por exemplo, Bechara (1989). [5] Ver, por exemplo, a poesia “Cantar de Amor”, inspirada em D. Dinis. | |||||||
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