![]() A lei exemplar de Tristão ou a autoridade pelo amorAna Paiva Morais Universidade Nova de Lisboa
Et la passion est toujours de l’exemple Jacques Derrida, Passions O amor como princípio — Tristão “l’Amerus” A parte substancial do que nos resta do fragmento Sneyd do Roman de Tristan de Thomas d’Angleterre é dedicada ao episódio do casamento de Tristão com Isolda das Brancas Mãos[1]. Nele se desenvolve o conflito que aflige Tristão por ter acedido ao enlace com a filha do duque da Bretanha quando estava ainda vinculado pela promessa que fizera à sua amada. No entanto, os seus vários planos discursivos são caracterizados pela negação, lenta e minuciosa, daquilo que simbolicamente é determinante no casamento na narrativa romanesca do século XII. Neste, trata-se de constituir um espaço de confluência de vários elementos narrativos que configurará, prospectiva ou retrospectivamente, a acção do herói (por exemplo, em Erec e Enide ou em Cligès), podendo contribuir para criar um momento de suspensão ou de ruptura na narrativa que propicie a intervenção de uma nova lógica dos sentidos da aventura (como é o caso em Le chevalier au lion ou em Guillaume d’Angleterre). Na vasta quantidade de textos narrativos, produzidos em vários dialectos franceses, que o século XII nos legou, exemplos não faltariam para ilustrar a submissão do casamento ao princípio da aventura como peça de uma engrenagem narrativa que concorre para aprofundar o grau de complexidade do percurso pessoal ou interior que se projecta simbolicamente na colectividade. No Roman de Tristan, no entanto, verifica-se que o casamento de Tristão ocorre não com a funcionalidade que apontámos, mas como instrumento para a instalação da dúvida na mente do herói, dando início a um processo de questionação da identidade amorosa, que, ao mesmo tempo, a evidencia. Comecemos por notar que, desde o momento em que se desencadeia a paixão entre Tristão e Isolda a Loira, tal identidade se constitui contra o paradigma cortês do amor, o qual institui o herói como uma entidade formada de duas metades complementares, empenhado tanto em amar como em combater. Com efeito, após ter vencido o gigante Morholt, episódio em que o sobrinho do rei Marc assume a função cavaleiresca plena e que é prenúncio de um percurso que aparentemente não contraria o dos cavaleiros corteses dos romances arturianos, Tristão abandona as armas, às quais só voltará em duas ocasiões: no momento em que, já após ter deixado a rainha, se envolve em combate, ao serviço do rei de Espanha, contra o sobrinho do Estult l’Orgueilleux e, quando mais tarde acompanha Tristan le Nain, numa campanha contra o próprio Orgueilleux, resultando desta última a ferida profunda que lhe virá a ser fatal. É a vivência amorosa de Tristão que passa a orientar o seu percurso, dando-se uma ruptura com a concepção do amante-cavaleiro. O amor passa a ocupar, então, a totalidade do espaço da acção. A passagem do primeiro Tristão, o valeroso cavaleiro, favorito do rei Marc, ao posterior e mais singular ‘Tristan l’Amerus’[2] revela uma mudança profunda no herói, que age a partir de então sem código definido que o determine, nem lei que possa regê-lo. No entanto, a perturbação causada pela queda na indeterminação, que tende a autonomizar o herói, só aparece na sua plenitude assumida depois de se dar a separação entre Tristão e Isolda a Loira. Com efeito, num primeiro momento, o amor, como não está completamente separado da proeza e da noção de estratégia, tende a ocupar a dupla função amar-combater, e o herói, apesar de ser inteiramente dominado pela paixão, nunca é afectado pelo problema da ‘recréantise’ de que padecem os heróis do tipo de Érec quando se abandonam ao amor em detrimento das outras vertentes da cavalaria. Deixemos, pois, os factos relatados na versão que nos chegou através de Béroul para nos concentrarmos no episódio do casamento na versão de Thomas d’Angleterre, a fim de observarmos certos aspectos que, nessa progressiva autonomização, concorrem para legitimar o herói tristaniano através do amor como sentimento, criando um paradigma narrativo profundamente diverso do dos romances arturianos, mau grado certos elementos temáticos e simbólicos comuns, mas que não deve ser totalmente desligado de uma tradição teológico-didáctica que é determinante na configuração das narrativas poéticas medievais.
O “corage” de Tristão A separação entre os amantes precipita o fim de um paradigma do amor absoluto — apesar de este ter sido introduzido pela ingestão casual do filtro e dominado pela sombra do adultério —, momento de ruptura em que sobressai a segurança mútua que os amantes experimentam logo seguida do seu reverso, o acaso. Esta quebra é assinalada pelo jogo rimático aseor / eor, que, ao mesmo tempo, sublinha a estranheza emergente que passa a dominar Tristão:
Entre ses bas Yseut la reïne. Bien cuidoitent estre aseor. Sorvient i par estrange eor Li rois, que li nains i amene. [3]
É o ‘estrange eor’ que vai precipitar todos os acontecimentos que levarão ao banimento de Tristão da corte do rei Marc; mas o termo ‘eor’ também serve para instituir uma nova experiência amorosa: se, anteriormente, Isolda não aparecera como imagem, mas como presença real, é a partir do momento em que Tristão é afastado que a vai investir como imagem, passando o amante a fazer a experiência amorosa a partir dos próprios discursos que profere acerca da mulher amada e da natureza do amor. O tópico da diversidade é introduzido para definir tal figura feminina, que é apresentada como uma imagem da alteridade discursiva, no expoente máximo da sua inacessibilidade: E dit dunc: «Ysolt, bele amie, Molt diverse est vostre vie: La nostre amur tant se desevre Qu’ele n’est fors pur mei decevre.[4]
O amor determina agora uma atitude interrogativa por parte de Tristão, que coloca a questão amorosa, voltando-a para o seu interior: E! Deu, bel pere, reis celestre, Icest cange coment puit estre? Coment avreit ele changé, Quant encore maint l’amisté? Coment porrat l’amur gurpir?[5]
A interioridade é, a partir de então, o lugar em que o malogrado amante vai fazer a experiência do amor. O trabalho de negação de todas as figuras femininas que não Isolda a Loira é feito no «corage» de Tristão, espaço íntimo em se confundem a sede do amor como sentimento e a origem íntima do pensamento, constituindo uma matriz simultaneamente intelectual e afectiva[6]. Mas se esta negação é realizada, fundamentalmente, pelo discurso que Tristão profere no seu íntimo, o solilóquio amoroso imediatamente revela um sujeito partido entre um Eu que fala e um Tu a quem se dirige, entre o locutor-amante e a entidade divina que interpela. No sistema interlocutivo medieval, o Tu divino é uma representação da única entidade autónoma possível, o Outro face a quem o sujeito se define, contudo Tristão faz dele um Tu interior, uma outra face do Eu. Atentemos na constituição desta modalidade de lugar íntimo do amor. Na tradição
agostiniana, o
diálogo com a divindade segue a forma do solilóquio, tal como o que aqui
encontramos. Enquanto os
antigos se baseavam em modelos com os quais se comparavam e identificavam,
Santo Agostinho, rompe com esta lógica dos modelos, prescindindo deles
para se colocar face a face com a divindade.
Se o solilóquio é um «falam O solilóquio de Tristão não deve ser analisado sem que se tenha presente a estrutura soliloquial agostiniana, mas, contudo, distingue-se desta por apresentar uma dialogia que se volta para o interior, em que o Tu divino, após a primeira invocação a Deus, se revela como um tu interior, a outra face do Eu[9]. É assim que não só o termo “corage” é recorrente ao longo de todo o texto, como, significativamente, também aparece associado ao verbo «sentir», como na expressão “en mun corage tres bien sent” (v. 84). Neste contexto, a interpelação interrogativa da divindade nesta passagem do Roman de Tristan, revela-se uma questionação da natureza do sujeito amador na sua condição de exilado de uma lei que o determine, de um código que o oriente e face ao qual se possa definir. Esta indeterminação manifesta-se, em primeiro lugar, numa bifocagem do ideal feminino que se duplica nas duas Isoldas. Estas são aproximadas, na mente de Tristão, pela beleza e pelo nome, aspectos que em Isolda das Brancas Mãos se limitam à superfície retórica da semelhança. Esta figura feminina aparece, aliás, como explicação e não como substituição da amada ausente, sendo a sua semelhança com Isolda a Loira mais da ordem da similitudo[10] do que da comparação: Car Ysolt as Blanches mains volt Pur belté e pur nun d’Isolt. Ja pur belté qu’en li fust, Se le nun d’Isolt ne oüst, Ne pur le nun senz belté, Ne l’oust Tristans en volenté.[11]
A indeterminação interior aparece, ainda, na medida em que o que impele Tristão para o casamento com Isolda das Brancas Mãos é a vontade de experimentar dramaticamente um tipo de desejo semelhante àquele que une Isolda a Loira e o rei Marc. Por outras palavras, o casamento parece justificar-se enquanto solução para o enigma do desejo de Isolda, constituindo assim uma estratégia usada por Tristão para integrar mimeticamente o desejo da amada de quem está separado: Jo voil espuser la meschine Pur saveir l’estre a la reïne, Si l’espusaille e l’assembler Me pureient li faire oblier, Si cum ele pur sun seignur Ad entroblié nostre amur. Nel faz mie li pur haïr, Mais pur ço que jo voil partir, U li amer cum ele fait mei Pur saveir cume aime lu rei. [12]
Mas é inevitável que a solução pela mimese para o enigma do desejo da amada precipite o amante num processo de identificação com a própria ausência daquela, o que acaba por fazê-lo participar de um complexo feminino do sentimento. A natureza do amante resulta de uma construção feita de representações dramáticas do amor de Isolda. No entanto, esta experiência no seio do Eu tristaniano do amor de Isolda, por encenada que seja[13], é fundamental para propiciar o encontro do sujeito consigo mesmo, para que ele tenha a revelação da sua natureza íntima. Daí a importância que adquire neste episódio do Roman de Tristan o solilóquio como forma privilegiada do discurso amoroso, mas, por outro lado, o esquema dialogal que atravessa o solilóquio revela a natureza íntima do amante como um espaço complexo e compósito. A interioridade de Tristão, que parte de uma interiorização da sensibilidade feminina e começa por uma atenção voltada sobre a amada e as formas do seu sentimento amoroso, vai-se progressivamente virando para outros aspectos já relacionados com a vivência individual do amor. No momento em que se prepara para as núpcias com Isolda das Brancas Mãos, ao retirarem-lhe o manto, o anel solta-se-lhe do dedo. Tristão olha e vê-o caído no chão. Trata-se do anel que a rainha lhe dera no vergel por ocasião da última entrevista dos amantes. Este incidente vai precipitar Tristão num êxtase pensativo que provoca um discurso interior voltado sobre um Eu marcado por um forte carácter enigmático: “en sun corage se retrait | par l’anel qu’il en sun dei veit”[14]. Este pormenor dá início a um outro aspecto do amor tristaniano. O enigma encontra-se, nesta fase, já não no sentimento amoroso da amada, mas concentra-se directamente no próprio amante, e é sobre o seu mistério que incide a longa interrogação soliloquial que se estende a partir do verso 411. A visão do anel vai desencadear um processo imagético diverso do da imaginação idealizada do desejo feminino a que mais acima me referi. Ele relaciona-se com uma visão voltada para o interior, para o «corage» que é também interioridade moral e intelectualmente configurada, em que está em causa a legitimidade do amor e a identidade amorosa. A essência conflitual do amor de Tristão torna-se, assim, o núcleo fundamental de uma identidade amorosa enigmática, mas também ilegítima, que é imperativo resolver. O dilema entre a promessa feita à Rainha e o contrato de casamento estabelecido com a filha do Duque de Bretanha releva de uma identidade problemática, que já não é assegurada unicamente pela narração mas que é evidenciada pelo próprio sujeito: “ço est tuit par mun fol corage, | ki tant m’irt jolif e volage”[15]. A menção de uma interioridade inexplicável («fol corage») é sublinhada pela insistência na questão da loucura, própria de quem ama, que é recorrente nas linhas seguintes[16]. O discurso do pensamento de Tristão revela o problema de um herói que procura fundar a sua identidade amorosa num contexto que não corresponde ao dos códigos corteses nem se pode reclamar de qualquer outro código. Um discurso amoroso que se situa tanto à margem da auctoritas como da ars coloca a palavra numa zona confinante com o discurso da loucura, e põe o locutor no lugar de um estranho, de um ser desprovido de identidade. Nesta perspectiva, poder-se-á considerar a auto-interrogação de Tristão como um momento privilegiado no texto medieval de encontro com o sujeito, mas, ao mesmo tempo, da constatação da exacta impossibilidade desse encontro[17]. A grande questão aqui reside em que se perdeu a ligação mimética a um ideal do sujeito. O sujeito amoroso constrói-se no discurso, rejeitando-se progressivamente valores-chave, como o carácter feminino do sentimento, a autoridade divina, ou o código cortês do amor. Isto indica, quanto a nós, que o Tristão de Thomas procura apagar a origem e instituir-se como pulsão transformadora, deslocando para o seu interior o amor, entendido como força refundadora. Isso mesmo parece revelar a insistência no diálogo do Eu com o Eu, que constitui uma forma de eliminar as distâncias do sujeito relativamente ao texto. Ausente qualquer elo com a auctoritas que pudesse autentificar a descrição do amor de Tristão, como referimos já, procura-se refundar uma autoridade amorosa no íntimo do herói-amante. A dignificação do sentimento amoroso corresponderia a essa emergência, a partir do interior, de uma outra modalidade da autoridade que, não sendo da ordem da auctoritas, poderá legitimar a narrativa promovendo uma regra interna, oferecendo ao leitor um amante que instaura o seu próprio esquema actuante em lugar de proceder à imitação, alguém que se apresenta como figura exemplar de um modelo formado no seu interior.
O amante exemplar Para Tristão, o amor coloca um problema irresolúvel, é possível dizer mesmo que o amor constitui a própria modalidade existencial do irresolúvel. Na generalidade dos episódios que têm por núcleo a estrutura dilemática do amor — os mais significativos dos quais se encontram na versão de Béroul — o conflito é situado exteriormente, ele ameaça o estatuto cortês do herói, mas não coloca em perigo a sua vertente amatória, sendo ao nível da palavra equivocada que o dilema se desenvolve. Recorde-se, a título de exemplo, o encontro dos amantes sob o pinheiro ou o ‘escondit’ de Isolda. Aqui, por outro lado, o conflito afecta a própria estrutura interior de Tristão, transformando o herói num sujeito do conflito, situação que lhe confere uma dimensão sentimental de contornos líricos que está ausente dos episódios relatados por Béroul, já referidos, onde o dilema se resolve num registo que muitas vezes se aproxima do cómico. Em nosso entender, esta deslocação do amor para o modo lírico dá-se a par da sua reconfiguração ao nível do exemplo. Concentrando-se, como aqui acontece, na acção estruturante do pensamento e na auto-reflexividade, o amor perde o carácter universal que lhe é conferido pelas personagens heróicas para se singularizar. A análise do amor empreendida por Tristão leva-o à estruturação da sua paixão segundo elementos modelares por si mesmo identificados como tal, que são mais conformes com as virtudes teológicas do que com as características do herói romanesco; Tristão apresenta-se como exemplo desse modelo que se instaura no contexto do romance. É assim que a sua paixão, envolvida na lógica do engano, da traição e da falta à promessa, acaba por se resolver pela introdução da ordem da virtude. Tristão opta pela castidade no casamento, permanecendo, deste modo, fiel a ambos os compromissos, mas, ao mesmo tempo, elimina a amada da esfera do amor. Com a solução preconizada, Tristão deixa de ser o ‘enginné’, o amante que se traíra a si mesmo por quebrar o juramento de amor feito a Isolda a Loira, condição a que o tinha remetido uma paixão que o dispersava na duplicação das figuras da amada e, por isso, assumira os contornos da falsidade; agora, a relação amorosa constitui-se como uma relação auto-reflexiva com o próprio sofrimento. A legitimação do amor implica uma concentração no sujeito de toda a experiência amorosa, com a consequente passagem do amor para o nível da virtude, ou seja, a sua deslocação do plano da ficção poética para o do exemplo moral. O amante exemplar apresenta-se como penitente[18], e torna-se uma entidade sacrificial. Ilustração disso é não só o facto de o seu amor ser expresso por uma resistência ao desejo, como também de os feitos de armas de Tristão, cuja fama o poderia reabilitar junto da amada distante, serem elididos. Exilado do desejo e da notoriedade, Tristão é um amante inefável, cuja exemplaridade se constitui, precisamente, pela debilitação da componente ficcional da narrativa, processo que tem por efeito intensificar o sentimento na sua dimensão lírica e investir o protagonista como ilustração particular de um valor universal. O episódio termina com a apresentação de duas narrativas encaixadas na narrativa principal: a primeira corresponde à narração pelo narrador das valerosas proezas de Tristão quando ao serviço do rei de Espanha, inspirada no Roman de Brut de Wace[19]; a segunda é o conhecido lai de Ignauré, cantado por Isolda, onde se conta como Ignauré foi condenado à morte por ter amado uma dama até à loucura e como, depois, por perfídia, o marido lhe deu a comer o coração do seu amado. Assistimos, neste momento, à passagem do registo lírico, que domina quase todo o episódio, ao registo narrativo. Esta deslocação tem a função de produzir narrativas, directa ou dramaticamente, reveladoras da exemplaridade da figura de Tristão, e constitui uma nítida interferência do exemplo narrativo no romanesco. No momento em que estas narrativas são apresentadas no corpo do romance, Tristão ter-se-á mostrado, já, como figura exemplar da virtude purificadora do amor. Mas é no final do romance que melhor o podemos observar: a morte de Tristão serve de exemplo para a morte de Isolda, depois de encontrar o seu amado morto, que é narrada na parte final do fragmento Douce[20]. Tal lógica de referência — verdadeira estrutura especular constituída internamente — mostra como, na economia amorosa, Tristão representa para Isolda um exemplo de uma lei universal do amor pela virtude sacrificial, de como ela procura dignificar o seu amor na imitação do amante exemplar, e de participar, ela própria, da sua exemplaridade. É esta capacidade de mostrar o amor como categoria universal — significando isto, no contexto literário medieval, que ele tem valor ético e poético — e de produzir dele actualizações narrativas, que faz de Tristão uma figura exemplar. Esta exemplaridade contrasta com uma vertente poética representada por Cariado, o pretendente de Isolda que procura desviá-la da sua paixão pelo sobrinho do rei Marc. Cariado é marcado pela vertente negativa da cortesia e reflecte um amor que se esgota na ficção: Il esteit molt bels chevaliers, Corteis, orguillus e firs; Mes n’irt mie bien a loer Endreit de ses armes porter. Il ert molt bels e bons parleres, Doneür e gabeeres. [21]
Excelente falador e “gabeere”, o seu principal atributo é ser bom contador de histórias burlescas. Ele distingue-se como amante faceto, e está muito afastado da figura do amante exemplar, caracterizado por virtudes de contornos ascéticos como o sofrimento e a castidade, que Tristão reflecte. É possível dizer que o amor de Cariado se esgota na ficção; falta-lhe a dimensão de espelho que assiste ao exemplo. É precisamente a propriedade especular que determina a exemplaridade do amor veiculado por Tristão, segundo se afirma nos últimos versos do Roman de Tristan no fragmento Sneyd. Por propriedade especular, o narrador entende, não o reflexo da verdade histórica, nem a transposição de narrativas anteriores, mas o embelezamento da narrativa de tal modo que todos os amantes possam encontrar no exemplo apresentado como que um espelho de si mesmos, uma consolação para todas as inconstâncias, malefícios, sofrimentos e armadilhas do amor. O exemplo resulta, então, de um exacerbamento estético do amor de modo a que a narrativa romanesca, na sua singularidade, funcione como uma verdadeira lente de aumento da situação dos amantes em geral. Se a legitimação do amor depende da sua conversão numa lógica do exemplo, como procurámos demonstrar, por outro lado, ela não poderá ser conseguida sem que o plano ético seja confirmado pela função estética. O amor que Tristão representa é esteticamente exemplar ao mesmo tempo que detém uma singularidade especial; e esta singularidade, por outro lado, consiste na sua aptidão para reflectir o amor como categoria ética, ou seja, ela reside na capacidade de, apesar de ser um caso particular, poder apontar o amor na sua universalidade abstracta. É este trânsito entre o particular e o geral que faz com que possamos falar de uma lei exemplar a propósito da figura de Tristão em Thomas d’Angleterre. Mas, o exemplo de Tristão não deixa de estar maculado pela ambiguidade que persiste muito para além da solução encontrada para o seu dilema. A questão que permanece, não obstante todas as respostas, é a de se decidir se com Tristão estamos perante um bom ou um mau exemplo. Mas esse seria assunto para outra comunicação.
Notas [1] Referimo-nos ao episódio conhecido por “Le mariage”, embora o fragmento Sneyd abarque ainda uma parte constante do chamado “fin du poème” (vv. 783-839). Todas as citações são feitas a partir da edição de 1960, Thomas, Les fragments du Roman de Tristan, poème du XII siècle, Bartina H. Wind, ed., Genève-Paris, Droz-Minard, 1960. [2] ‘Dénouement du roman’, manuscrito Douce, v. 929. [3] “Le verger”, manuscrito de Cambridge, vv. 1-4. [4] “Le mariage de Tristan”, fragmento Sneyd, vv. 7-10. [5] Vv. 49-53. [6] O termo «corage» joga com o radical “-cor”, abrindo um leque de sentidos que são explorados no decorrer do texto, nomeadamente os que se relacionam com o termo cœur na sua ambiguidade, com o pensamento íntimo e com o sentimento. No glossário incluído no final da edição em que aqui nos baseamos, Bartina H. Wind indica precisamente estes significados no verbete «corage». [7] Livro de Sancto Agostinho: cód. Alcob. CCLXXIII / 198 / edição crítica e glossário por Maria Adelaide Valle Cintra, Lisboa I.A.C., 1957 (Publ. do Centro de Estudos Filológicos, 6). [8] Aaron Gourevitch, La Naissance de l’individu dans l’Europe Médiévale, Paris, Seuil / Faire l’Europe, 1997:120. [9] «Les sentiments humains, considérés tout au long du Moyen Age comme des forces autonomes spécifiques, dotées d’une existence indépendante et susceptibles d’occuper ou d’abandonner l’âme de l’individu, sont progressivement interprétés comme des qualités psychiques intégrantes de la personnalité […] les mots formés avec le préfixe auto- et indiquant le rapport de l’individu à soi, le sentiment qu’il a de lui-même, ne se sont multipliés qu’à partir de la Réforme.», id. ib.:125. [10] Remetemos para a noção de similitudo tal como é entendida na retórica da pregação do século XIII. As similitudines têm uma função explicativa e distinguem-se dos exempla. Por outro lado, as similitudines têm um carácter eminentemente parafrástico, mas a componente narrativa é menos marcada do que nos exempla. Isidoro de Sevilha propusera distinguir o exemplum e a similitudo, definindo o primeiro como narrativa e a segunda por se fundamentar na realidade da coisa com a qual se estabelece a comparação. Bremond, Le Goff e Schmitt, L'« Exemplum», Turnhout (Typologie des sources du Moyen Age Occidental, Fasc. 40), Brepols, 1982:154-158. [11] Vv. 197-202. [12] Vv. 173-182. [13] Veja-se o diálogo encenado dos vv. 88-94, em que Tristão simultaneamente coloca as questões que o atormentam relativamente ao amor de Isolda e lhes responde. [14] Vv. 404-405. [15] Vv. 417-418, itálicos meus. [16] «Quant empris ceste derverie», vv. 422; «Ore m’estuit fare folie.», vv. 428. [17] Neste ponto, reconhecemos a importância de se comparar o problema da relação entre loucura e amor, que aqui se esboça, com o conflito que percorre o Roman de la Rose entre a razão e o amor, dois pólos igualmente estruturantes do conflito amoroso tristaniano [«Amur e raisun le destraint, | E le voleir de sun cors vaint», Roman de Tristan, vv. 601-602, itálicos nossos.]. Não cabendo, aqui, o desenvolvimento desta questão, referimos, no entanto, alguns aspectos que sobressaem numa primeira comparação entre os dois textos. Se no texto do século XIII, a questão se joga no plano alegórico, já a oposição razão/amor em que vive Tristão é representada numa cena interior que afecta, sobretudo, a natureza ética do sujeito amante. No Roman de Tristan, está em causa o carácter ético-simbólico do amor, e não o plano de uma poética dos discursos para o qual a questão do amor evoluirá no século seguinte com Jean de Meun, discussão que, aliás, será, no século XIV, objecto de desenvolvimentos de extrema importância do ponto de vista do estatuto ético-poético da questão do amor, na chamada ‘querelle du Roman de la Rose’. [18] «Tel penitence preng sur mei, | Quant ele savra cum sui destreit | Par tant pardoner le mei deit.», vv. 586-588. [19] Esta narrativa, que tem como protagonista o Orgueilleux, gigante amador de barbas, é inspirada num episódio do Brut de Wace (v. 11960 s.). [20] «Amis, Tristran, quant mort vus vei | Par raisun vivre puis ne dei. | Mort estes pur la meie amur | E jo muer, amis, de tendrur», Fragmento Douce vv. 1811-1814. [21] Vv. 811-816. ![]() | |||||||
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