![]() Discurso de legitimação da política na AntiguidadeAntónio Augusto Tavares Universidade Nova de Lisboa
Discurso de legitimação é tema vasto que pode encontrar-se em todas as épocas da história e nas mais variadas circunstâncias. Na Antiguidade, poderá considerar-se como uma categoria hermenêutica que deve estar presente de modo especial na interpretação e análise das fontes de história política. E tanto pode legitimar algo que vai acontecer como um acontecimento passado. Assumindo a forma da oratória convencional ou recorrendo ao sonho, à prática da adivinhação ou da profecia, ou servindo-se do oráculo mais enigmático e de múltiplos meios, o "discurso" de legitimação, permite compreender os ínvios caminhos que a história por vezes seguiu, bem como anomalias que se impuseram como normas. Numa palavra, explica o que logicamente seria inexplicável. Nesta despretensiosa e singela digressão, começamos por recordar exemplos significativos na história dos povos e civilizações da Antiguidade Oriental, para depois analisarmos a força que adquiriu na ideologia imperial em Roma. Habitualmente faz-se coincidir o início da história com o aparecimento das fontes escritas e aceita-se que tal ocorreu na Mesopotâmia. Foi também aí que nasceu o primeiro império, pelo século XXIV a.C., tendo por fundador Sargão. Homem de origem desconhecida, de infância obscura, emigrante das regiões semíticas, passa de copeiro-mór na corte do rei de Kish a rei e fundador de Acad, cidade e reino que se situaria onde actualmente se ergue a bela cidade de Bagdad. Organiza um exército de 5400 guerreiros profissionais, consegue unificar o sul da Mesopotâmia e estende os seus domínios territoriais de forma até então nunca vista. Pela documentação da época, verifica-se que ultrapassou de longe, nas suas conquistas, as fronteiras da Mesopotâmia: avançou até ao Mediterrâneo, impondo o seu poder pelas terras das suas margens orientais, como o Líbano e apoderou-se de reinos poderosos da época, como eram Ebla, Mari, Yarmut, etc. Pela primeira vez, como comenta Paul Garelli, um estado metia directamente em comunicação os países do Oriente e do Ocidente"[1]. O facto devia ter impressionado vivamente os seus contemporâneos que se deram conta de que o mundo era muito maior do que pensavam. Estavam perante um mundo novo. Foi assim que transpuseram da realidade para a lenda o herói de tais proezas. Como acontece na "idade dos heróis", própria da origem dos povos, de que fala Chadwick, também aqui se deu o fenómeno da heroicização. A explicação de tão altos feitos, a legitimação do herói consistiu na predilecção que teve por ele a deusa Ishtar, deusa do amor e da guerra. É em síntese o que nos informa a notável inscrição que permanece na estela de Sargão, cujo texto longo, de índole fantasiosa e laudatória, termina com estas palavras: "a deusa Ishtar tomou-se de amores por mim, e desta forma é que eu exerci a realeza durante 56 anos"[2]. O núcleo forte da ideologia política de império nasceu ali: Sargão conquistara praticamente todo o Médio Oriente por ser o eleito da deusa Ishtar. O mesmo fenómeno de heroicização continuaria com os seus próximos descendentes, especialmente com o neto Naram-Sin. Figuras reais passavam da história para a lenda. Criava-se uma autêntica ideologia imperial que iria continuar por diversas épocas. Com a predilecção da divindade, as conquistas e as guerras seriam sempre legitimadas. Tal aconteceria por exemplo com Gudeia, príncipe de Lagash e construtor de quinze santuários, e o mesmo viria a acontecer com o rei legislador da Babilónia, Hamurábi, também ele famoso pelas suas guerras de conquista. Tudo porque fora eleito pela da divindade, como nos conta a sua estela onde se ficou escrito que era "o príncipe piedoso e temente a deus, o pastor e conquistador dos quatro cantos da terra"[3]. A ideologia política procurou sempre, nas civilizações orientais, a sua legitimação na religião. E tal acontece especialmente no império neo-assírio. O rei proclama habitualmente como título fundamental para a sua legitimidade a ligação com um deus ou vários deuses: é o deus que o escolhe e algumas vezes o predestina para a realeza desde o ventre materno, predestinação que é proclamada com ênfase particular se ele usurpa o trono, visto não ser o herdeiro legítimo. Entre os vários exemplos, veja-se o caso de Assaradão, que usa a titulatura tradicional, "rei dos quatro cantos da terra" a quem Assur, Shamash... Ishtar de Nínive e a Ishtar de Arbela nomearam rei da Assíria desde quando era jovem. O mesmo aconteceria com o seu filho e sucessor, chegando a insinuar a sua predestinação para a realeza desde o ventre materno. Assim escreve o seu cronista: "Eu sou Assurbanípal... que Assur e Sin designaram (literalmente pronunciaram o nome) desde os dias longínquos para a realeza e que eles formaram no ventre da mãe para a guarda do país de Assur"[4]. Por causa desta teoria da escolha divina, o rei assírio era sempre legítimo. Proclamada a sua legitimidade em termos religiosos desde a coroação, também as suas guerras por mais iníquas e cruéis que fossem (e quanto se poderia dizer da crueldade da guerras dos Assírios!) eram legítimas, digamos "justas" ou mesmo "santas". Como observa a propósito Liverani, uma guerra é sempre justa quando é provocada por nós e é injusta quando provocada pelo inimigo[5]. É dentro destas teorias de legitimação dos reis da Assíria que se poderão entender os juramentos de fidelidade absoluta que prestavam ao rei os seus próximos servidores e aqueles que assumiam responsabilidades pela manutenção da ordem em qualquer província do império. Estes, por sua vez, deviam obrigar as populações sob a sua jurisdição a prestar idênticos juramentos. O serviço ao rei era uma sequência do serviço à divindade. Estamos na prática dentro de uma "teologia" da obediência. No Egipto, onde o rei era divinizado, pois ele era o filho do deus, o discurso da legitimação real, ao assumir a forma de sonho, de profecia ou de oráculo desempenhou, por vezes, uma função determinante na história. Recorde-se que num papiro da XVIII dinastia, ficou registada uma antiga tradição segundo a qual os três primeiros reis da V dinastia haviam nascido de mãe mortal que tivera relações com o próprio deus. Não nos admiremos por isso que se tenha recorrido a uma representação artística de índole narrativa para legitimar o acesso ao faraonato por Hatshepsut. O caso é tanto mais estranho quanto é verdade que o acesso ao trono no Egipto por uma mulher era teórica e praticamente impossível. Hatshepsut usurpou o poder (nem valerá a pena pormenorizarmos as circunstâncias em que tal aconteceu), porque teve do seu lado o oráculo do grande deus do Império Novo Amon-Rê a legitimar a sua ambição. Para tal nada melhor que representar o próprio deus a gerá-la fisicamente, tendo relações com a própria mãe. Ficaram patentes aos olhares de todos as representações em relevo dessa teogamia no templo funerário de Deir Bahari. Em baixos relevos, de elevada técnica e de grande beleza, mostra-se de forma engenhosa e realista a união do deus Amon, que tomou a forma física de Tutmósis I, com a rainha sua esposa. A rainha por sua vez encontra-se a repousar no seu palácio e acorda com o perfume do deus que se aproxima e lhe sorri. Ela exulta perante a sua beleza e, como informa o texto: "o seu amor penetra os seus membros". Nem faltou, após o nascimento, uma cena de exaltação da criança na assembleia dos deuses. É Amon que lhes apresenta, a menina recém-nascida, seguindo-se a aclamação de todos: "ela é a tua filha, nascida do teu corpo, que tu concebeste e criaste"[6]. Sem a divinização do faraó, nada é explicável na história do Egipto, mas aceitando tal concepção, que, de certo, ultrapassa os nossos espíritos críticos, tudo ali se compreende e encontra o seu lugar, até mesmo este "discurso" engenhoso da arte sobre o nascimento de Hatshepsut para legitimar o seu acesso ao trono. Mas na história do Egipto, que é menos linear do que por vezes se supõe, houve necessidade, noutras ocasiões, de se recorrer ao discurso de legitimação. Ficou famosa por exemplo uma conspiração no harém, nos finais do reinado de Ramsés III, fomentada por uma das mulheres desse faraó com a nítida intenção de fazer do seu filho o herdeiro do trono, como bem explica Pascal Vernus no seu livro Affaires et Scandales sous les Ramsès, num capítulo que intitula "La conspiration du harem sous Ramsès III"[7]. Neste e noutros casos do género impunha-se a aceitação por parte do povo só conseguida pela legitimação que tinha de vir da escolha da divindade. Também entre os Hebreus, alguma vez se recorreu a idêntico estratagema para legitimar o acesso ao trono, sendo um claro exemplo a escolha de Salomão, que não sendo o primogénito, sucedeu ao rei David, devido à estratégia da mãe, Betsabeia, que escolheu para o propor ao povo e justificar a sua realeza, um homem de Deus, o profeta Natan, ou seja mais uma vez o apego ao factor religioso para legitimar a política[8]. Na história dos Persas, tem especial interesse a conquista da Babilónia pelo rei Ciro. Para nos situarmos, vejamos desde já o que escreveu um escriba da sua corte no conhecido cilindro de Ciro: "Marduk (o deus da Babilónia), o grande senhor, protector dos seus adoradores, observou com prazer as boas obras de Ciro e o seu coração recto. Por isso fê-lo marchar contra a sua cidade de Babilónia. Fez com que empreendesse o caminho de Babilónia, indo a seu lado como um amigo. As suas tropas dispersas - cujo número, como a água de um rio, não pode indicar-se, entraram sem usar as armas. Sem haver batalha, ele fez entrar Ciro na sua cidade de Babilónia, evitando à cidade toda a calamidade"[9]. Vejamos bem: pode supor-se que a Babilónia estivesse preparada para não oferecer resistência, por temer a derrota. Poderá mesmo admitir-se que desejava o conquistador, tal como mais tarde haveria de abrir as portas a outro conquistador, Alexandre Magno. Mas não há dúvida de que o êxito da conquista de Ciro é atribuído aqui ao deus Marduk, que foi ao seu lado como um amigo, para lhe entregar sem combate a famosa cidade de Babilónia. Curiosamente justifica-se a ajuda do deus ao rei persa porque ele era bom. E a mesma inscrição dá-nos a conhecer um pouco antes que o imperador se esforçou sempre por tratar segundo a justiça os cabeças negras (ou seja os homens) a quem fez conquistar. A linguagem de legitimação desta conquista contém ainda a clara afirmação da eleição divina de Ciro para a realeza, ao informar: "foi Marduk quem pronunciou o seu nome para que ele fosse rei e declarou o seu nome para que fosse o governante de todo o mundo". A este propósito é justo recordarmos que a própria Bíblia se faria eco dos louvores a Ciro, pelo facto de ter permitido o regresso dos exilados a Jerusalém. E mais tarde, cerca de um século e meio após a sua morte, o general e historiador ateniense, Xenofonte, iria exaltá-lo na famosa obra que é a Ciropedia. Após a legitimação da conquista, encontramos repetidamente o discurso de louvor a este soberano, que inaugurava na prática uma nova época no governo dos povos no seu vasto império, marcado pelo exercício do respeito, da justiça e da tolerância. Mas suponho que o melhor discurso de louvor às suas conquistas e à sua política de magnanimidade não é o que registam as palavras que lemos nas antigas fontes, mas é a arquitectura que perdura nos palácios reais de Susa e de Persépolis, e que os turistas de hoje normalmente não sabem entender. Impressionam-se, é certo, com a grandeza, beleza e exuberância da decoração, mas não compreendem as múltiplas proveniências dos seus elementos decorativos e estilísticos. Tudo ali é expressão da grandeza de um império onde não havia rigidez, nem política monolítica. Quando os sátrapas e os nobres visitavam qualquer palácio real, podiam ver ali com natural espanto e alegria elementos das suas próprias terras. Não era uma mescla híbrida e casual a daqueles palácios, era uma composição intencional, para que todos se sentissem na própria casa. Estas ideias que a arquitectura revela fazem-nos pensar que estamos num mundo novo onde o universalismo era uma realidade: nada de estranho nestes palácios. Algo de globalização está a passar-se ou porventura de política de commonwealth, como alguém diria. Estava a surgir um mundo novo, com homens que saíam do mundo antigo[10]. O DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO NA IDEOLOGIA IMPERIAL DE ROMA Na Antiguidade, a força do discurso de legitimação sente-se de forma particular na ideologia imperial de Roma. Efectivamente não foram apenas as legiões romanas a criarem o império, mas antes do poderio militar, existiu uma ideia de superioridade, arreigada no povo que impelia Roma para as suas conquistas. De mãos dadas e de forma mais ou menos consciente, historiadores, oradores e poetas contribuíram tanto como os soldados para criar o império. Não será oportuno e seria mesmo fastidioso analisarmos de forma sistemática textos seleccionados de diversos géneros literários, onde o discurso de legitimação aparece constantemente repetido, em múltiplas circunstâncias e de formas diversas, ao serviço da política imperial. Parece-me preferível apontar o que se passou em momentos-chave de algumas guerras de conquista. Poderemos começar pelas guerras contra Cartago, quando no século III a.C. prosperavam os comerciantes e cambistas na cidade do Tibre. Foi nesse meio que surgiu e se desenvolveu a ideia da guerra contra Cartago, grande potência rival de Roma. De facto essa antiga colónia fenícia tinha estabelecido um verdadeiro império mercantil e colonial pelas ilhas do Mediterrâneo, tendo fundado colónias ou feitorias designadamente na Sicília, na Córsega e nas Baleares. Se por um lado havia o apetite de conquista, por outro havia consciência do risco. O próprio senado não via com bons olhos uma guerra cheia de perigos, como na prática os Romanos haveriam de constatar. Se a primeira guerra, levada a efeito por influência da poderosa família de Ápio Cláudio, se revestiu de dificuldades, a segunda em que se distinguiu Cipião o africano, como nos relata Políbio, teve graves consequências para ambas as partes. Assim sendo, a terceira era muito arriscada e não desejada pelo senado. Todos sabiam que a cidade de Cartago, qual "fénix renascida", após a derrota voltava novamente a erguer-se com renovadas forças. Só poderia justificar-se tal empreendimento bélico levasse a uma derrota definitiva É esse o sentido da oratória no senado, onde se distinguiria Marco Pórcio Catão. Contra a opinião generalizada, repetia nos seus discursos argumentos que legitimavam a guerra. Sendo este senador "um homem de bem, perito na arte de falar"(como ele próprio definia o orador), conseguiu inflamar os ouvintes que acabaram por aderir ao seu discurso que terminava sistematicamente com esta conclusão: ceterum censeo Carthaginem esse delendam, "finalmente penso que Cartago tem de ser destruída". Efectivamente seria destruída para não mais se levantar. E post factum, havemos de reconhecer que o senador tinha razão em justificar a guerra, pois a conquista do Mediterrâneo Ocidental abriu caminho a Roma para entrar na Península Ibérica e para dominar todo o Ocidente. Estávamos em 218 a.C. Mas as ambições de Roma, que, de cidade estava a transformar-se em império, não se limitavam ao Ocidente. Desejava que todo o Mediterrâneo se tornasse o seu mar interno. Ambicionava conquistar a Grécia e o Oriente, empreendimento por demais arrojado por muitas razões e especialmente por exigir guerras por mar e por terra. Impunha-se também agora que a oratória política preparasse e entusiasmasse os cidadãos romanos no forum, enquanto os oficiais do exército teriam de preparar os soldados na caserna. Pois bem, desta vez o discurso de legitimação e de justificação da guerra viria de Cícero, o mais famoso orador romano, sendo o comando das operações bélicas confiado a Pompeu. Analisemos um pouco mais de perto a situação. A "Lei Gabínia" concedera à plebe o direito de eleger os seus generais. Só dessa forma seria possível a Pompeu aceder ao poder em 67 a. C. Mas não se pense que foi fácil esta vitória para Pompeu. A influência decisiva ficou a dever-se ao apaixonado discurso de Cícero, que entusiasmou a multidão ao apresentar aquele homem como "divino". Ele ultrapassava todos os outros pelos seus conhecimentos militares, pela sua temperança e pela sua lealdade. Era um homem "caído do céu"[11]. A este discurso de Cícero ninguém poderia ficar indiferente. E valha a verdade que não foram defraudadas as expectativas que ele incutiu no povo romano. Pompeu iria subjugar a zona dos Balcãs, haveria de submeter a Arménia e avançar até ao Cáucaso. Depois de depor os Selêucidas, converteu a Síria em província romana; chamado daí à Palestina pelos irmãos macabeus Aristóbulo e Hircano, que entre si disputavam o poder, resolveu a disputa colocando a Judeia sob o protectorado romano. Em 64 tomou Jerusalém e foi concluir a sua marcha junto dos muros de Jericó. Quando terminou a guerra, o poderio de Roma era bem maior do que antes, pois a sua soberania estendia-se desde o Bósforo até à Arménia e daí à Palestina. Levaria dali um gigantesco espólio de guerra para os seus soldados e para o tesouro público e uma glória que nada poderia obscurecer. Ao chegar a Roma, receberia as honras do triunfo com um esplendor como nunca tinha sido visto: não era só a multidão anónima dos vencidos que o seguiam, eram também reis e príncipes atrás do seu carro de majestade, enquanto largos panos pintados proclamavam as façanhas do seu heroísmo. Mas as conquistas haviam de prosseguir porque as ambições de Roma só tinham por limite as fronteiras do mundo de então. Faltava-lhe conquistar regiões importantes da Europa, como por exemplo a Gália, tarefa que seria desempenhada por Júlio César apoiado pelos dois colegas do triunvirato, Pompeu e Crasso. Curiosamente Júlio César fez a história como político e como general, escrevendo-a mais tarde para a posteridade. A sua obra por excelência é o De Bello Galico. Foi aí que ele eternizou as suas façanhas e fê-lo com tal simplicidade que nos dá a impressão de um quadro objectivo, sem deixar de ser uma historiografia pragmática, que concorre para a exaltação do poder de Roma. Ele atinge em cheio a alma dos seus leitores. Servindo alimento sadio, alimenta e fortalece a mística do império: Roma era superior; tinha por destino dominar o mundo. Este é o discurso dos historiadores da época, que tinham por missão influenciar o público, persuadir, porventura legitimar. Nalguns casos preocupavam-se mais com a forma da exposição do que com a verdade dos factos. Estavam empenhados na mística colectiva de império. O maior de todos os historiadores foi Tito Lívio, que nos deixou a obra monumental Ab Urbe Condita, constituída por 142 volumes de que se conservam 35. É através da sua história que melhor podemos avaliar da consciência viva que o povo romano tinha de si mesmo, da sua origem e do seu destino. É um historiador de tese, preocupado em exibir, a partir dos exemplos do passado, o amor à pátria. Por isso, exalta tudo o que contribuía para a grandeza de Roma. A linha de força da sua obra é exaltar a pátria, o que o leva a dar especial relevo aos discursos dos seus personagens, não fosse ele próprio um orador de formação, perito em explorar todos os recursos da oratória. A história, com Tito Lívio, torna-se pois uma poderosa arma política. Com tal objectivo, ele põe o acento nas acções exemplares, nas virtudes dos antepassados e nas suas palavras dignas de memória. O seu conceito de história é tal que o leva a aceitar as lendas das origens de Roma. É evidente que não poderá garantir que as tenha recolhido em documentação autêntica e fidedigna, mas também não tem coragem de as desmentir. No seu entender, a glória de Roma era suficientemente grande para se lhe poder atribuir origem divina. Se todos aceitavam a autoridade de Roma, por que não haviam de aceitar também que, no seu nascimento, tenha intervindo Marte, o deus da guerra? Com tais sentimentos, à maneira do general que repousa após as honras do triunfo, também ele podia exclamar: "estou feliz por ter contribuído para recordar os altos feitos do primeiro povo do mundo"[12]. Na mesma esteira podemos colocar o poeta Ovídeo, que nos seus Faustos, em 6 livros, parte da narrativa da criação do mundo, percorre vários caminhos e dá crédito às lendas, mormente às que dizem respeito ao ciclo de Tróia, para evocar a fundação de Roma. Observando o mundo, reconhece em Roma uma forma superior de civilização. Para ele, Augusto, o imperador, é na terra o guia e pai, tal como Júpiter é guia e pai no céu. Sendo esta a linguagem de Ovídeo, não admira que o próprio imperador tenha mandado exarar, numa grande e notável inscrição, o seu auto-elogio, no grandioso monumento que é a Ara Pacis, em Roma. Em duas colunas de bronze fez gravar o relato das suas façanhas, que ele próprio redigiu. Nesse grande monumento epigráfico, o imperador fala dos seus cargos e honrarias, descreve as suas façanhas políticas e guerreiras e apresenta-se com toda a sua glória. Pretendia desse modo narrar a história que ele próprio fizera, por ser um acto do maior alcance político, provando como era verdadeira a afirmação de Ovídeo de que Augusto era na terra guia e pai. A POESIA NA MÍSTICA DO IMPÉRIO Ao lado dos historiadores e dos oradores, os poetas contribuíram para implantar a mística do império. E ninguém como o poeta podia influenciar, justificar, legitimar feitos militares e persuadir. É que o poeta era um predestinado, alguém que recebia a inspiração da divindade. Além disso, os versos memorizavam-se e alcançavam um valor perene, como aliás defendia um dos maiores vultos da poesia romana, Horácio, ao proclamar que os poemas eram mais duradoiros do que o bronze. Escrevia assim no tempo de Augusto, fazendo-se eco da mística imperial. Os poetas tinham uma função pública a desempenhar: deviam cantar com entusiasmo e admiração o passado, a fim de prepararem o futuro. Horácio exalta as origens de Roma com o fim de propor uma mensagem de fé no destino do povo romano, já que os romanos são senhores de uma civilização superior e têm por vocação e destino o domínio do mundo. Entretanto Virgílio iria superar Horácio na força de persuasão. A sua poesia é de facto a que melhor encarna o espírito da mística política nacional. Atento aos projectos da política do império, escreve uma obra de notável valor poético e portadora de uma forte mensagem, as Geórgicas, a que nem sempre se presta a devida atenção, por não se atender ao alcance da sua proposta, que era determinada pelas circunstâncias. Vejamos: soube que Augusto tinha a intenção de licenciar os seus soldados, desejando que em seguida se dedicassem à agricultura, a fim de assegurarem o sustento das cidades e contribuírem para paz do império. Para legitimar este projecto, que nem todos compreendiam e aceitavam, escreve a referida obra, onde exalta a beleza do campo e da agricultura. O poema não era inocente; estava longe de ser uma pombinha sem fel. Tinha por intenção legitimar a política do imperador. Digamos que foi um êxito. Augusto de tal modo apreciou esta obra que, ao regressar das suas actividades, deu ao poeta a honrosa ordem de lhe ler o notável poema em voz alta. No entanto o grande poema épico de valor nacional seria composto a seguir. Foi a Eneida, onde canta o destino de Roma e a grandeza do imperador Augusto. Atribui a Eneias, filho da deusa Vénus e de Anquises, a grande missão de fundar Roma, cidade destinada a dominar outros povos. Roma era diferente e superior, como escrevia: "que outros povos, como os Gregos, animem o mármore e o bronze, convertendo-o em figuras e estudem o percurso das estrelas. Mas tu, romano, lembra-te, deves dominar os povos". Tal como a história (recordemos Tito Lívio), a poesia serviu-se das lendas da fundação de Roma como fundamento do discurso persuasivo para influenciar o público, persuadir, massificar, como agora diríamos. A ideologia imperial que atinge o seu auge no principado de Augusto, antes de ter ao seu serviço as armas contou efectivamente com os historiadores, com os poetas e os oradores, que transmitiam apaixonadamente a mística imperial. Não foi só Tito Lívio ou Virgílio, Horácio ou Cícero. Foram todos, cada um a seu modo, a formarem o cidadão. De Cícero pode César dizer: "Descobriste todos os tesouros da oratória e foste o primeiro a servir-te desse tesouros; alcançaste a glória mais formosa e um triunfo bem melhor que o dos generais; porque é mais importante alargar os limites do espírito do que estender as fronteiras do império"[13]. Como quer que seja, alargar as fronteiras era efectivamente o grande objectivo. Segundo o conceito dos mentores políticos e ideólogos o acto de conquistar novas terras era uma extensão das bênçãos da civilização para com os países atrasados. A expansão era portanto uma libertação, tal o sentido porventura eufemista, mas profundo, do discurso que uns e outros, usavam para legitimar o imperialismo romano. A LEGITIMAÇÃO PELA ARTE Também a arte, tal como a história, a oratória e a poesia havia de legitimar e exaltar a política imperial de Roma. Diga-se, a propósito e por curiosidade, que a arte em Roma só alcançou a sua autonomia no início do império, pois até então tinha fortes marcas da Grécia. Com Augusto, o império reforçou a unidade e os monumentos multiplicaram-se pelas diversas províncias. Iniciava-se então um grande período de paz. A partir do ano 2 a. C., o Senado confere a Augusto o direito a intitular-se Pai da Pátria e difunde-se o conceito de Pax Augusta ou Pax Romana. Poetas como Horácio e Virgílio exaltaram, nos seus poemas, esse tempo de paz que Augusto inaugurava. Pois bem, é dentro deste contexto histórico que se deve entender o monumento de Ara Pacis, a que já antes fizemos alusão, um dos principais da época, destinado a exercer grande influência no povo. Todo o monumento, com o altar e cenas representadas nas paredes, legitima, sem dúvida, o título de Pai da Pátria que o senado conferiu ao imperador. É possível distinguir numa composição a elite do império, começando pela família de Augusto, os membros da aristocracia, os sacerdotes e vários servos que acompanham o cortejo. Num dos frisos, observa-se a procissão ao chegar ao termo, salientando-se a figura principal, Augusto, o príncipe que preside à cerimónia. Aí se representa a sua pietas ao apresentar a oferta à Pax sobre um altar. Notemos que Cícero proclamava nos seus discursos que os Romanos tinham conseguido reunir todas as raças e povos por causa da sua piedade, pelo culto aos deuses e pela religião. Neste monumento, pode admirar-se a pax augusta e a deusa Roma como garante dessa paz. O divino Augusto simboliza o renascimento romano sob o signo da paz, qual "filho de deus que renova a idade do Lácio", como escrevia Virgílio no canto VI da Eneida. Eis pois como este notável monumento, admirado como uma vigorosa expressão da arte estatal da época, está ao serviço da política imperial. Ali, mesmo os iletrados podiam ver que o senado fizera bem ao conceder ao imperador César Augusto o título que ele merecia e mais apreciava. A arte legitimava desta forma o Pater Patriae, Pai da Pátria. Outro monumento da arte imperial que não deverá ser esquecido neste contexto é o da coluna do forum de Trajano. Recordemos também em que circunstâncias surgiu. Depois do triunfo de Trajano sobre a Dácia (Roménia), em 107, o imperador quis assumir o título de Dácio e foi então que o seu arquitecto Apolodoro de Damasco se encarregou de planear essa obra grandiosa. Da grandeza do forum podemos avaliar quando sabemos que a sua área é tão grande como a de todos os outros em conjunto, mas falemos antes da coluna recoberta por uma banda de relevos dispostos em espiral com mais de 200 metros de comprimento. Contém 2500 figuras que descrevem precisamente as campanhas militares de Trajano contra os Dácios. Por curiosidade refira-se que ali aparecem representados, entre outros, soldados oriundos da Lusitânia, o que não é de estranhar, visto que Trajano, sendo oriundo de Sevilha, lhes conhecia a valentia. Toda a composição tem por centro a figura do imperador, que aparece repetidas vezes a sacrificar, a falar às tropas, a usar de clemência para com os vencidos, etc. Com Trajano, o império romano atingia o auge do seu esplendor na organização interna e na extensão territorial. Se este imperador não nos deixou uma obra como o De Bello Galico de Júlio César ou como a Res Gestae de Augusto, teve Tácito a escrever-lhe os Anais, uma obra que o apresenta como o melhor dos imperadores. Ele é o Óptimo. Depois dele, nada mais se podia desejar a um imperador romano do que isto: "que sejas mais feliz que Augusto e melhor que Trajano". Mas os seus feitos e a sua glória também ficariam gravados nesta gigantesca coluna, a legitimar os seus títulos e a entusiasmar toda a Antiguidade, tal a força do discurso da arte. Conta-se que o Papa Gregório Magno, durante uma procissão pelo forum de Trajano, ficou tão impressionado com tanta grandeza e beleza que fez uma oração pelo seu construtor, que fora um pagão, suplicando a Deus que o libertasse dos suplícios eternos. Tão excelsa maravilha merecia de Deus a misericórdia para um pagão. A coluna recoberta de cenas militares e encimada pela estátua desse grande imperador, tem um impacto que dificilmente podemos imaginar[14].É como um filme de exaltação dos seus feitos e das suas guerras. Ele é o semper invictus, o providentissimus princeps.
Notas [1] P. GARELLI, Le Proche Orient Asiatique des Origines aux Peuples de la Mer, PUF, 1969, p.86. [2] Seguimos o texto francês proposto por R. LABAT, Les Religions du Proche-Orient asiatique, Paris, Fayard/Denoël, 1970, p.308. [3] O Código de Hammurabi (tradução do original cuneiforme) de E. BOUZON, Petrópolis, Ed. Vozes, 1976, p.20. [4] Versão do texto cuneiforme apresentado por P.GARELLI in "L´État et la légitimité royale sous l´Empire Assyrian, Mesopotamia, 7, Copenhaga, 1979, p.325. [5] M. LIVERANI, "The ideology of the assyrian empire", Mesopotamia, 7, p.301. [6] Cl. LALOUETTE, La Littérature egyptienne, Paris, PUF, 1981, p.26 [7] P. VERNUS, Affaires et Scandales sous les Ramsès, Paris, Pygmalion, 1993; cap. V, p.141-158. [8] A. A. TAVARES, "A mulher nas lutas pela sucessão do poder real no Médio Oriente Antigo", in Poder e sociedade, Vol. I, 1990, Universidade Aberta, p.17-18. [9] J. B. PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts (ANET), Princeton, 1969, 315.316. [10] J. B. PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts (ANET), Princeton, 1969, 315.316. [11] A. A. TAVARES, Op. cit. p.95. [12] Citação em A. A. TAVARES, ibidem, 104. [13] E. NACK, W. WAGNER, Roma, Barcelona, Ed. Labor S.A., 1960, p.303. [14] A. A. TAVARES, "Ideologia imperial na Arte", in Op. Cit., p.111-113.l ![]() | |||||||
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