![]() Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de PortugalUniversidade Aberta
Legitimação é o acto legal de tornar legítimo, lídimo, aquele ou aquilo que o não é. O autor do acto de legitimar é quem possui o poder de o fazer, seja ele o rei/imperador ou, em algumas épocas históricas, também o papa. Ou seja é o detentor do exercício da lex, que legitima, por exemplo, um bastardo, isto é, aquele que está fora de uma comunidade ou de uma família, porque não pertence a uma linha “direita” de sucessão, reconhecida pela lei. O direito de legitimar acaba por ser um direito real, ou seja, daquele que é autor e executor da lei. Assim D. Dinis, quando legitima os filhos de anónimas fidalgas religiosas fá-lo, salientando a sua “mercê”, o seu “poder” e “graça especial”, assim como o “serviço de Deus”. Com esta legitimação, o bastardo passou a ter igual direito ao dos descendentes legítimos em relação ao património familiar e às dignidades da família a que a mãe pertencia[1]. Mas a legitimação não lhes permitia todos os direitos sociais. De facto, o mesmo soberano excluía-os do direito de comedoria nos mosteiros e nas igrejas, porque
Procurando observar o teor de uma carta régia de legitimação, escolhemos o exemplo da carta que legitima Pedro Álvares, filho de frei Álvaro Gonçalves, e irmão de Nuno Álvares Pereira. D. Pedro I legitimou os filhos do prior do Hospital, assumindo o poder real, segundo o enunciado jurídico deste, em voga nos alvores da afirmação da centralização real: “poder absoluto e minha certa ciência”. Com base neste seu poder, o rei possibilitou a um filho natural, por meio da legitimação, que ele usufruísse das honras dos fidalgos que nasciam legitimamente, quer no plano das heranças, quer no plano dos privilégios e excluía-o de toda a acção da legislação canónica e cível, sobre os filhos espúrios, apesar de haver interpretações de juristas que interditavam aos assim nascidos que pudessem ser legitimados. Rematava o soberano declarando “tolho as e nom quero que embarguem esta legitimaçam nem que ajam lugar em aqueste (...) Ca mjnha tençom he de o legitimar e abilitar” [3]. Ou seja, a legitimação era entendida como um acto de graça, de mercê, de poder, exercido discricionariamente pelo rei, que integrava, - porque ele, rei, assim o queria, - um bastardo numa comunidade/família, numa ordem, quer fosse social, quer fosse política, porque estava ausente dela. Mas tal não significava que a legitimação fosse sancionada pelo divino, como afirmava D. Dinis, ou até pelo direito, como enunciava D. Pedro I. Ora, tal como o indivíduo espúrio, também o poder necessitava de ser legitimado, sobretudo se ele decorria de uma desordem social, mesmo que dela tivesse surgido uma nova ordem. Tal sucedeu nos acontecimentos de 1383-85, que colocaram no trono um bastardo, nunca legitimado pelo pai, o rei D. Pedro I, e que nasceram de uma revolta/revolução contra o poder existente, entendido como legítimo, porque sancionado por cortes. Revolta/revolução que, apesar de vitoriosa e restauradora da ordem social, necessitava de ser legitimada, porque pressupunha uma ruptura em relação ao poder legítimo de D. Beatriz e uma guerra ilícita: guerra ilícita porque erguida entre dois reinos cristãos, o que não era de estranhar na Europa do século XIV; guerra ilícita, contra a verdadeira herdeira, D. Beatriz, ou contra o infante primogénito por linha varonil, D. João, filho de D. Pedro e Inês de Castro. A necessidade de legitimar o novo poder estabelecido ia produzir um discurso de legitimação da autonomia ou da independência de Portugal frente a Castela, alicerçando-o em dois pilares, no passado pelo discurso dos feitos heróicos do primeiro rei de Portugal, feitos heróicos que lhe deram um reino, prometido por Cristo, e no presente, pelo feito heróico de Aljubarrota e pelas cortes de Coimbra, feito que fora profetizado e premonitoriamente sonhado. Este discurso seria reavivado ao longo de toda a dinastia de Avis, porque como Damião de Góis escrevia na Crónica do Príncipe D. João, a propósito das festas realizadas quando do nascimento deste príncipe: “prinçipalmente em Regno onde hos vassallos sam táo costumados a quererem Rei natural, e nam strangeiro, ho que podera aconteçer se ha rainha nam parira mais que ha Infante donna Ioanna” [4]. Esse discurso traduziu-se pela força das armas, - a guerra também legitima, se for uma guerra justa -, e, ao mesmo tempo, pela escrita. Esta última, ao serviço do novo poder, iria justificar o “gramde desvairo, que o mui virtuoso Rei da boa memoria dom Joham ... ouve com ho nobre e poderoso Rei dom Joham de Castella”, como diria Fernão Lopes. A crónica dos acontecimentos surgia, assim, para ressaltar a “çertidom das estorias”, contra aqueles de Castela e de Portugal que falsearam os verdadeiros acontecimentos[5]. Em Coimbra, João das Regras foi o autor do discurso de legitimação do Mestre de Avis, ao trono de Portugal. Doutor em direito canónico e em direito civil, João das Regras era, sem dúvida, o autor ideal para gizar o discurso político à altura dos acontecimentos. Só um letrado podia desmontar as várias correntes que se degladiavam e, mesmo as que divergindo lutavam ao lado do Mestre contra Castela. A resposta de João das Regras à preocupação do Mestre era bem elucidativa, apesar de poder ter sido literariamente construída por Fernão Lopes: “Senhor, (...), eu ei assaz trabalhado por mostrar per vivas rrazões e dereitos que estes rreinos som vagos de todo, e a emliçom delles fica livremente ao poboo (...) estes rreinos som de todo pomto vagos, e nenhuum ha hi que os deva e possa herdar per linhagem, nem a quem de dereito perteeçam” [6]. Ao declarar a ilegitimidade de todos os candidatos ao trono, João das Regras igualava-os, a todos eles, por defeito, ou seja, colocava-os fora da ordem definida pelo direito. Foi assim que declarou espúrios, os filhos de D. Pedro e de Inês de Castro, os infantes legitimados por um casamento não aceite à luz da Igreja e excluiu o candidato mais perigoso, o infante D. João. Tornava-se necessário ilegitimar também D. Beatriz e Castela. Contra a primeira levantou a suspeição de filha legítima de D. Fernando, devido aos comportamentos duvidosos da rainha Leonor Teles. A segunda, Castela, reino cristão contra o qual podia ser questionada a legitimidade da guerra, era arredada porque era “cismática” e não só era inimiga de Portugal, mas também da Santa Igreja e do verdadeiro Papa. A acusação de heresia acabava por confirmar a guerra justa no seio da cristandade [7] . Faltava apenas seleccionar as virtudes daquele que devia ser eleito, apesar do “deffectu de sua naçença, come na profissom que aa Hordem dAvis fezera” [8]. D. João, apesar de bastardo, era filho de rei; era corajoso ou, dito de outra maneira, era um herói; amava os povos não os querendo deixar na sujeição dos inimigos; era bondoso e era devoto, como demonstrava o ter ido falar com frei João da Barroca de S. Francisco, o tal eremita franciscano que viera de Jerusalém até Lisboa, atrás de uma revelação em sonhos [9]. As cortes de Coimbra elegiam um “filho de rei” que se assumia como filho de D. Pedro, neto e bisneto de D. Afonso IV e D. Dinis e “de sangue e linhagem dereita dos ditos Reis e prinçepes”, numa conjuntura em que o reino ficara destituído “de herdeiros de linha dereita a que mais pertençesem que a nos”. O rei de Castela aparecia como o usurpador que pretendia colocar Portugal sob o seu domínio, Portugal que os seus reis conquistaram aos mouros. Era a causa da liberdade que o Mestre agarrava nas mãos, acompanhada nesta vontade pelos povos, mas também por Deus que não queria que o reino caísse em poder “de nossos Emjgos maiormente cismategos Reuees contra a Jgrega de rroma”, pelo que “consentimos a seer Rey E senhor destes Reinos E defensor da lyurydooe E Eiçiçam delles” [10]. Ratificaria, legitimando o querer dos portugueses, que aclamaram D. João como rei, nas cortes de Coimbra, a aprovação do papa Urbano VI. D. João cumprira todos os passos necessários para ser rei: herói militar, eleito pelos povos, reconhecido por Roma. A guerra entre Portugal e Castela tornara-se numa cruzada contra os hereges, os infiéis, que seguiam o papa de Avinhão. A independência de Portugal alicerçava-se em eventos legítimos. Faltava criar uma ideologia que legitimasse para sempre a separação entre Portugal e Castela. Como? Fazendo intervir o divino, divino que se exteriorizava pelo cumprimento de actos fantásticos, inexplicáveis, como era um pequeno número de portugueses vencer um exército numeroso, como era um bastardo aceder ao trono como cabecilha de uma revolta popular urbana, tornada revolta/revolução nacional pela independência. Tal acontecimento extraordinário fazia-o ser entendido como traçado por Deus, Aquele que em sua providemcia nehuuma cousa falleçe”, Aquele que tiinha desposto de o Meestre seer Rei”, como afirmava o nosso cronista [11]. Mas Fernão Lopes, nas crónicas que redigiu, soube transmitir o pensamento político, carregado de messianismo, que norteava a nova dinastia. A ligação ao divino foi habilmente explorada pelo autor que utilizou sonho, profecia e milagres como ingredientes da nova ideologia nascente: um reino autónomo de Castela pela vontade de Deus; um reino que permaneceria para sempre nos descendentes do Mestre de Avis, tornado rei de Portugal, tal como profetizara frei João da Barroca. Sobre o Mestre de Avis, o bastardo de D. Pedro I, o cronista fez recair duas profecias, uma feita a este rei sobre um dos seus filhos de nome João, “que eu tenho huum filho Joanne, que ade montar muito alto, e per que o reino de Purtugal adaver mui gramde homra, a qual seria acompanhada por um sonho alegórico que identificava o herói desconhecido com o jovem Mestre de Avis [12] e a outra saída da boca de frei João Barroca, o eremita franciscano que veio, movido por uma revelação, de Jerusalém para Lisboa, onde seria tido por santo. Frei João da Barroca iria predizer ao Mestre de Avis a sua ascensão ao trono de Portugal, trono que seria transmitido aos seus descendentes
A vontade divina manifestar-se-ia, ainda, de outras maneiras, legitimando a “alsaçam” de um bastardo ao trono dos reis de Portugal. Eram as vitórias de poucos (os Portugueses) sobre muitos (os Castelhanos); eram as ocorrências de índole sobrenatural como a procissão de homens de alvas vestes com círios acesos em direcção à ermida dos Mártires, heróis da conquista de Lisboa aos mouros, ou os “lumes” nas torres da muralha de Lisboa, ou a chuva de cera em Montemor-o-Velho. Outras vozes se ergueriam para apelar à união dos "verdadeiros portugueses" à volta do Mestre de Avis, contra Castela, a cismática, como a do frade do Porto. É a sétima idade que se iniciava com D. João, ou o paralelismo que o cronista fazia entre a pessoa do Mestre de Avis e a de Moisés na condução do povo eleito à Terra da Promissão, apressando-se a declarar "como quem jogueta", porque "taaes openioões bem som demgeitar açerca dos emtemdidos"[13] . O Mestre de Avis era o “escondido”, o príncipe “desejado” para restaurar a ordem no meio do caos em que o reino se encontrava. Tal como no sonho alegórico de D. Pedro I, ele estava predestinado para apagar o fogo que consumia o reino. A vitória era devida à protecção divina, para cuja intercessão concorriam as orações dos portugueses, de Nuno Álvares, de frei João da Barroca, das santas mulheres emparedadas. A causa nacional era entendida como serviço a Deus e ao Mestre, não lhe faltando sequer milagres, como os ocorridos em Lisboa. Os seus mortos morriam pela salvação dos portugueses e acto divino, milagroso e premonitório era o pregão do Mestre como rei de Portugal feito pelos garotos de Coimbra, o mesmo Mestre que depreciativamente era intitulado pelos opositores por "Messias de Lisboa” [14]. Coimbra e Aljubarrota deram o trono a um bastardo real. A legitimação procurada, nos primeiros momentos, deve ter parecido insuficiente para os negócios da diplomacia, a favor da paz e do reconhecimento ao direito do Mestre ao trono, se nos lembrarmos das atitudes bélicas assumidas pelos filhos de Inês de Castro e pelos seus partidários. Tornava-se necessário produzir um processo de legitimação com o recurso ao divino, tal como vimos explorado em Fernão Lopes, a voz oficial da corte. Desconhecemos, no entanto, quando esse processo se iniciou, para além das cortes e dos actos bélicos, e se fez ouvir, quer interna, quer externamente. De facto, verifica-se que o processo de legitimação que vai originar um discurso próprio e oficial tem dois percursos diferentes mas paralelos: um de cariz messiânico, centrado no Mestre de Avis; um outro, alicerçado no direito de Portugal à independência, independência, proveniente de um acto de vontade de Deus. A tese de povo eleito desenvolvia-se a par da aclamação do Mestre como rei, um novo povo de Deus conduzido por um novo Moisés. Os seus autores, com toda a probabilidade, foram os monges de Sta. Cruz de Coimbra, como iremos analisar. Para explicar a actuação divina em actos tidos por excepcionais, os contemporâneos procuraram um outro evento extraordinário na história portuguesa: Ourique. Ourique e Aljubarrota eram duas batalhas com pontos comuns: nelas um pequeno exército vencera um numeroso exército; em ambas, o inimigo era o infiel, em lato senso. Previamente a ambas acontecera a aclamação de um novo rei, pela vontade dos que o seguiam e o apoiavam na luta. Ourique e Aljubarrota apareciam com o carácter iniciático da fundação/refundação do reino, libertando-o do poder de Leão e Castela, mas também do poder dos infiéis, fossem estes os muçulmanos ou os hereges castelhanos. Em ambos os eventos, os reis fundadores afirmavam-se como heróis de uma guerra lícita, contra infiéis, a qual acabaria por avalizar um acto de rebelião contra o soberano legítimo, acto controverso à luz do direito da época. O discurso de legitimação aparece-nos, assim, na construção ideológica de Trezentos e dos alvores da modernidade, sempre com uma relação directa ao sagrado, ao divino que sancionava a ruptura, a transgressão da ordem anteriormente estabelecida, outorgando uma protecção especial ao “eleito”. O fundador tinha, assim, de assumir-se pelos actos heróicos e vencedores, como autor de uma ruptura e justificá-la por um objectivo nobre que transformasse em legítimo um acto ilícito. A eleição divina marcava sempre o herói vencedor e era a vitória das armas a primeira consagração dessa legitimidade conferida ao novo poder que dela adveio. A eleição divina justificava ainda um poder inexplicável aos olhos dos humanos, inexplicável porque estranho à norma reconhecida pela sociedade. A ligação ao sagrado traduzia-se pelo milagre, pelo sonho premonitório ou pela profecia. Se estes exaltavam a individualidade eleita, detentora de um carisma especial, conferido na generalidade pela proximidade à família real, lídima detentora do poder, é verdade que a eleição abrangia também a comunidade que a rodeava, conferindo-lhe também favor e escolha divinos. Se D. João, mestre de Avis aparecia, aos olhos da época, como um rei refundador, o príncipe fundador era, sem dúvida, Afonso Henriques. A este remontava a memória da fundação do reino independente. E foi à volta desta figura que se começou a desenhar a legenda de um reino de Portugal, que existia pela vontade de Deus. Ourique tornava-se o acontecimento matricial, original, onde os reis de Portugal tinham ido buscar o seu armorial. Tal como a família e o senhorio, as armas do rei assinalavam a origem extraordinária da sua aclamação: Afonso Henriques, príncipe-rei, vencera cinco reis mouros, numa vitória em que 1 infanção português saíra vencedor de 100 muçulmanos. Os autores desta legenda aurea foram, sem dúvida, os monges crúzios, tanto mais que o mosteiro e o seu prior, D. Vasco, foram apoiantes acérrimos da causa do Mestre de Avis, bem como a cidade de Coimbra. Não nos podemos esquecer que foi nela que Fernão Lopes colocou as crianças a aclamar o Mestre como rei de Portugal e como todos quantos as ouviam “maravilhavamsse desto muito, avemdoo por cousa estranha, e assi como millagre, dizemdo que Deos os movera a fazer aquello, e fallava por aquelles moços come per bocas de profetas” [15]. Acresce ainda que num registo anónimo no mesmo mosteiro, alguém apontou o apoio dado à eleição do Mestre pelo mosteiro e por aqueles que nele se reuniam: “Em o cabidoo deste mosteiro foy fecto conselho açerqua dElrey Dom Joham em como ho aujam de alleuantar por Rey E senhor [16]. A construção da lenda começara a germinar. É na documentação de Sta. Cruz, mosteiro guardião da memória e do corpo do primeiro rei de Portugal, que encontramos o registo da batalha fundadora do reino de Portugal e do seu tratamento político para justificar os fins pretendidos pelos portugueses e pelos reis de Avis: a afirmação da independência de Portugal perante Castela. Vejamos como. As primitivas narrativas da batalha reflectiam já o impacte que Ourique tivera entre os portugueses e na relação destes com o infante que os encabeçava. De um lado um pequeno punhado de cavaleiros à volta do seu príncipe; do outro lado a mole imensa de muçulmanos, os infiéis. De um lado, um jovem príncipe; do outro, cinco reis mouros. Ambos os litigantes protestavam morrer pela sua fé e pelo seu comandante. Mas do lado português, aquele grupo de cavaleiros quis combater pelo seu rei e aclamou-o rei, ali mesmo no campo da batalha. Antes ou depois desta? A lenda ocupou o tempo do evento, mas não o seu espaço. Assim era narrada a batalha nas mais antigas versões de Sta. Cruz de Coimbra, como no Livro das Lembranças, miscelânea de anotações sobre eventos passados. Nele não encontramos a narrativa do milagre, mas da vontade de Deus na vitória: “aalem de Crasto Verde no Campo dOurique lidou o dicto Rey Dom Affomso Anriquez com cinquo Rex mouros, e o de mayor poder avia nome Ismar e prouve a Deus que os venceo” [17]. Também as 3ª e 4ª Crónicas Breves não fazem alusão a qualquer milagre, mas os cronistas não esqueciam de mencionar a “estoria” que acompanhava a batalha de Ourique, a qual aparecia relacionada com a aclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal e com as armas régias: os escudos em memória dos cinco reis mouros; os escudos em cruz, em lembrança da crucificação de Cristo; e os besantes, em número de trinta, em memória dos 30 dinheiros por que Cristo fora vendido [18] Esta associação às armas dos reis de Portugal era confirmada por selos e moedas reais, pelo que podemos concluir da relação entre a memória da batalha e as armas dos reis de Portugal. Se os observarmos bem, veremos a constância dos tipos e a sua possível interpretação com a lenda de Ourique. Cinco escudos em amêndoa encontravam-se dispostos em cruz equilateral, carregados por inúmeros besantes, que, apenas, com D. Dinis se fixariam em cinco, dispostos em aspa ou cruz de Sto. André. Este armorial real manteve-se inalterado desde os selos de Afonso Henriques e as moedas de ouro de Sancho I até D. Dinis e deste até D. João II, que, no ano de 1485, determinou que os dois escudetes laterais se posicionassem direitos em vez de deitados, pois na história portuguesa não havia memória de nenhuma derrota das armas reais. No entanto, tal vitória não foi suficiente para que o papa, detentor de um poder superior ao do dos reis e dos imperadores, porque representante de Deus na terra, reconhecesse Afonso Henriques como rei de Portugal. Um longo caminho de lutas e de vitórias sobre os infiéis deveria percorrer o jovem rei dos Portugueses, até ser reconhecido pela Santa Sé, poder ratificador em última instância de uma legitimação conferida pelas vitórias obtidas no campo da batalha sobre os infiéis, a única guerra justa e lícita reconhecida como tal na época. As bulas concedidas a Afonso Henriques pelos vários papas até Alexandre III eram reveladoras do reconhecimento da guerra justa e da heroicidade do príncipe português, no combate em prol da religião cristã contra o inimigo infiel, mas reflectiam também a dificuldade que Roma tinha em aceitar um novo reino na Península Ibérica, apesar de Afonso Henriques se ter declarado vassalo da Santa Sé, como forma de se desligar da suzerania do primo Afonso VII. Também a cronística oficial da corte desconhecia a referência ao milagre. D. Pedro, conde de Barcelos foi parco em informações sobre a gesta de Ourique, talvez porque a ele lhe interessasse mais os feitos da nobreza na luta contra o infiel do que o feito de um par que se tornou o fundador de uma casa real, mesmo que o sustentáculo desta fosse a luta e a vitória sobre os muçulmanos. Assim, o bastardo de D. Dinis e, depois os seus continuadores, não hesitaram em invocar o favor e protecção divina ou a intervenção do apóstolo S. Tiago em alguns feitos de Cid o Campeador, ou de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, nos campos de Mértola, ou a força da Vera Cruz, erguida por três freires da ordem do Hospital e pelo prior D. Álvaro Gonçalves Pereira, na vitória do Salado. Ourique, no entanto, aparecia no texto do conde de Barcelos reduzida a algo muito simples: “Despois houverom batalhas os seus com Mouros nos campos d’Ourique, e vencerom-nas. E na postumeira batalha que el venceo des ali se chamou el rei dom Afonso de Portugal”. E rematava “sua alma sera em paraiso” [19]. O autor da memória do Salado faria D. Afonso IV invocar o seu antepassado, não como o herói de Ourique, mas como o rei dispensador de bens e recompensas à nobreza de onde os presentes em Salado descendiam [20]. Afonso Henriques era aqui recordado como o fundador da nobreza portuguesa e das suas honras e coutos. Na Crónica Geral de Espanha de 1344, D. Pedro detinha-se um pouco mais no feito de Ourique, mencionando os cinco reis mouros que vinham com o rei Ismar, rei que dominava na Estremadura, acrescentando:
A definição do armorial real aparecia na sequência da aclamação e da vitória e associava-se à memória dos reis vencidos, à memória da morte de Cristo na cruz e à memória da traição de Judas ou da mácula que recaía sobre o povo judeu por ter condenado o Messias prometido. Em torno de Afonso Henriques, o fundador do reino pelas suas vitórias contra os infiéis, os mouros, surgia, em finais do século XIV, a afirmação do aparecimento miraculoso de Cristo ao fundador da monarquia portuguesa em Ourique, como o sinal de que Deus elegera o reino e os seus reis para grandes feitos contra os infiéis. Infiéis, que também eram os castelhanos, heréticos, porque apoiantes do papa de Avinhão contra o de Roma, o verdadeiro e legítimo papa. À lembrança da morte de Cristo na cruz construia-se a lenda do seu aparecimento a Afonso Henriques, lenda que se apoiava no imaginário criado em torno da vitória de Ourique e das armas reais. Moldava-se, assim, quiçá em paralelo, a ideologia da fundação, por protecção e vontade divinas, do reino de Portugal, frente aos mouros e a Castela, aparecendo os portugueses como um segundo povo eleito e o seu chefe como um novo Moisés, na imagem de Fernão Lopes. O religar dos dois fundadores, D. João I e D. Afonso Henriques deve ter sido construído pelos monges de Sta. Cruz de Coimbra, fiéis depositários do corpo, do escudo e da espada do primeiro rei de Portugal, monges que foram, também, incondicionais apoiantes do Mestre de Avis. Era necessário religar o presente com o passado. Nada melhor que os intermediários entre Deus e os homens para o realizar. Na nova versão da batalha de Ourique, existente em Sta. Cruz e datada de 1395, não encontramos ainda a alusão ao eremita que profetizaria a vitória, nem à independência do reino, nem à sua permanência nas mãos dos descendentes de Afonso Henriques, como viria a suceder, mais tarde, nos textos de conteúdo ideológico dos príncipes desta dinastia. Apenas temos a notícia do milagre, consubstanciado nas armas dos reis de Portugal.
Alterada a versão primitiva, algures em finais de Trezentos, pela visão miraculosa de Cristo na cruz pelo primeiro rei, é provável que esta última memória acentuasse o carácter da intervenção divina nos acontecimentos de 1383-85 e acompanhasse, entre 1389 e 1411, o desenrolar das negociações diplomáticas pela paz com Castela, em prol de uma independência miraculosamente querida por Deus e justificada pelas duas grandes batalhas: Ourique e Aljubarrota. A mesma narrativa do aparecimento de Cristo na cruz mantinha-se ainda em 1420, ano em que o abade D. Gomes fez a trasladação das relíquias dos Santos Mártires de Marrocos,
Esta reescrita da memória do acontecimento de Ourique saltara as paredes do mosteiro de Coimbra e corria na corte. Só assim podemos perceber a sua inclusão no Livro dos Arautos, escrito por volta de 1416, e na Crónica de Portugal de 1419. Escapa-nos, contudo, se este extravasar teve alguma relação directa com a conquista de Ceuta, ou seja, com o retomar da guerra contra os muçulmanos. Mais uma vez, ela seria repetida, em 1451, na prelecção feita quando do casamento de D. Leonor com o imperador Frederico III. Aqui, no registo crúzio da arenga, a genealogia da princesa remontava ao rei fundador, vencedor do Trastamara que lhe ocupara o senhorio do condado, vencedor do imperador Afonso VII e vencedor dos cinco reis mouros em Ourique, “omde lhe apareçeeo Noso Senhor Ihesu Christo posto em a cruz. Por cuija esemelhança do divinall misteryo pos em seu escudo as armas que ora trazem os Reys de Portugall” [24]. E continuava o elogio, enaltecendo as qualidades de grande e vitorioso lutador contra os mouros, assim como o seu sucessor e filho que, com ele, se encontra sepultado em Sta. Cruz. Tal memória seria anotada pelo embaixador do imperador Frederico III no seu diário de viagem, que estendia os actos de bravura dos reis fundadores ao povo português [25]. Vemos assim que, durante o reinado de D. João I, a lenda de Ourique foi forjada, como discurso do processo de legitimação da independência do reino frente a Castela, a infiel, porque herética, por via do milagre e da santificação do fundador, tornado em rei taumaturgo. O imaginário, associado à figura de Afonso Henriques, o guerreiro vencedor de mouros, alargar-se-ia à conquista do norte de África e à protecção dada pelo fundador aos portugueses na conquista de Ceuta. Tal S. Tiago aos mouros, Afonso Henriques não hesitara em abandonar o seu túmulo e, armado com a espada e o escudo, sair em auxílio dos portugueses, contribuindo para a vitória destes em Ceuta [26]. Contemporânea destes registos é a associação de santidade à figura do primeiro rei. Daí o aparecer mencionado como “santo rei” autor de milagres, compilados, pelo menos, desde meados do século XV pelos zeladores do seu túmulo, depósito de um corpo incorrupto, e que talvez preparassem um primeiro processo de canonização a apresentar a Roma, o qual não chegaria a ser concluído, mas permitiria que outros reis de Portugal o retomassem, a partir de meados do século XVI. A veneração em torno do primeiro rei faria que os monges crúzios levassem o seu escudo e espada a D. Sebastião, quando este partiu para a guerra no norte de África [27]. Outros textos que não os provenientes de Sta. Cruz dão-nos conta da elaboração, entretanto produzida e difundida, pelo menos, junto dos centros de poder como era a corte. No Livro dos Arautos, redigido durante o reinado de D. João I e datado de 1416, o seu autor apresentava o rei fundador, como “rei sereníssimo e invictíssimo, cujas obras são divinas”. Ao mesmo tempo, o anónimo autor, natural de Lamego, referenciava o simbolismo do seu escudo, colocado sobre o seu túmulo em Sta. Cruz de Coimbra. E nele está pendente o escudo que se diz ter pertencido ao primeiro rei cristão de Portugal, que conseguiu pela primeira vez expulsar os sarracenos deste reino e aí fazer adorar a Cristo Nosso Senhor. É voz corrente que quando tal rei de Portugal atingiu o limite dos seus dias, este escudo, embora estivesse a muita distância dele, pendente neste mosteiro, caiu por terra, no qual foi um sinal da morte do rei...” [28]. Ourique aparecia no seu relato, como o local da batalha dos portugueses contra os cinco reis mouros e os seus numerosos exércitos, luta desigual que se adivinhava comparável a David contra Golias, pelo que os barões portugueses, antes da batalha, desejando morrer com o seu senhor, elegeram este por seu rei. A batalha tornara-se numa vitória de Afonso que quebrou cada um dos escudos dos reis mouros, com a força do seu vigoroso braço. Mas Afonso Henriques não se apresentava apenas como um rei forte, lutador; a ele, a vitória tinha sido previamente anunciada com a visão de Cristo e das suas chagas. Por isso, as suas armas foram escolhidas naquele momento: os cinco escudos dos reis vencidos. E acrescentava o autor: “Mandou pintá-los deste modo: para honrar as cinco chagas de Jesus Cristo, cinco escudos em forma de cruz, da cor do céu em campo branco, e, nesses escudos, trinta moedas de prata para memória da venda de Jesus Cristo Nosso Senhor” [29]. Aqui, o autor do Livro dos Arautos não mencionava a visão de Cristo na cruz, mas a visão de Cristo com as cinco chagas, tal e qual como aparecera a S. Francisco de Assis. Estamos, portanto, perante uma outra versão do milagre, elaborada por outros autores que não os crúzios nem Coimbra, mas talvez franciscanos e Lisboa. Por sua vez, o autor da Crónica de Portugal de 1419 introduzia elementos novos: uma ermida acima da ribeira de Castro Verde; a arenga do príncipe aos seus companheiros que queriam abandonar o campo de batalha, mostrando um príncipe crente em Deus e na vitória; a conversa entre o ermitão, enviado por Deus a Afonso Henriques e que lhe anunciaria a visão miraculosa de Cristo, ao toque do sino que se encontrava na ermida; a visão e a adoração; a aclamação prévia à batalha. Em memória do aparecimento de Cristo na cruz, Afonso Henriques “pos sobre as armas bramquas que ele trazia huma cruz toda azul e polos cimquoo reys que lhe Deos fizera vemçer departyo a cruz em cinquo escudos e em cada hum escudo meteo trinta dinheyros a reveremçia da morte e payxão de Noso Senhor Jhesu Christo, que foy vendido por xxx dinheyros” [30]. Vemos, assim, que, durante o reinado de D. João I, Ourique transformou-se de um campo onde ocorrera uma memorável batalha num espaço sagrado, onde a presença de Cristo se manifestou a Afonso Henriques. À influência crúzia no esboço inicial da lenda de Ourique, sucedeu a influência franciscana com a visão das chagas de Cristo e o aparecimento do eremita, o santo homem, enviado por Deus para avisar Afonso Henriques que estivesse atento ao sinal que prenunciava a visão que ia receber. Transposição anacrónica de uma época em que eremitas, laicos e religiosos, pululavam pelo Alentejo, como acontecia na Serra de Ossa, mas também do imaginário que deve ter rodeado a conversa de frei João da Barroca de S. Francisco com o então Mestre de Avis. Imaginário que, pela boca do santo eremita, criava a profecia deste como rei, do reino na sua descendência e da independência portuguesa perante Castela. Esta construção profética, proveniente dos seus partidários de Lisboa, seria relembrada por Fernão Lopes, ou não pretendesse o cronista enaltecer os feitos do povo desta cidade e do seu “Messias”. Podemos supor que a ligação do eremita à lenda de Ourique deve ter sido quase contemporânea da construção do milagre, independentemente da necessidade de estudos de crítica textual sobre a versão da Crónica de 1419. Na oração solene que Vasco Fernandes de Lucena, embaixador de D. João II, leria na corte pontifícia ao papa Inocêncio VIII, em 1485, precisamente o ano da reforma das armas reais, a lenda de Ourique surgia narrada com o milagre do aparecimento de Cristo a Afonso Henriques e acrescentada pela interpelação que este Lhe fazia, sem esquecer a grande vitória nem as origens das armas de Portugal [31]. Estávamos perante a apresentação do reino ao novo papa. Justificava-se acentuar os feitos do primeiro rei na luta contra o Islão, tanto mais que a embaixada ia solicitar a bula de cruzada para a guerra de África, entre outros assuntos [32]. A confirmação da lenda de Ourique numa embaixada ao papa, pouco tempo após as mortes dos duques de Bragança e de Viseu, trazia à memória a resposta que D. João II dera aos embaixadores dos Reis Católicos, quando interrogado sobre o perdão aos filhos do duque de Bragança: “que a socessão destes Reynos se esperaua vir a seus filhos dambos, antre quem o casamento era concertado” [33]. As legendae aureae de Ourique e do rei fundador de Portugal encarnavam a legitimação ideológica da existência do reino, com identidade própria, dentro da Hispânia. Nelas iriam radicar o ideal de cruzada em que assentava o senhorio de além mar dos reis de Portugal. Mas não só. Num reino em que o casal real apenas tinha um filho herdeiro, o receio do poder do reino vizinho redobrava. Tal aconteceu quando, após a morte do príncipe D. Afonso e perante a hipótese de sucessão do bastardo D. Jorge, os Reis Católicos ameaçaram invadir Portugal e colocar no trono Joana e Filipe, o Belo, neto de Frederico III e de Leonor de Portugal [34]. Por isso, a escolha do duque de Beja para rei. Com D. Manuel encontramo-nos novamente com a necessidade de recorrer ao divino para explicar a sua ascensão ao trono, ou como cantava Garcia de Resende, na sua Miscelânea: “he muyto para espantar, / que por elle vir herdar / seis herdeiros fallesceram, / hos quaes todos ouueram / antes delle de reynar” [35]. Não irei elencar o que os contemporâneos escreveram sobre a escolha do filho mais novo do infante D. Fernando para rei de Portugal. Venturoso, Felicíssimo foram alguns dos cognomes que a memória registou. Também ele sentiu necessidade de remontar ao antepassado fundador, oferecendo-lhe uma sepultura condigna. Também ele confirmou a marca de santidade no corpo incorrupto do primeiro rei de Portugal. Encimado pela figura central de Nossa Senhora, o conjunto tumular de Afonso Henriques lembrava a guerra contra o mouro, não só na estátua jacente do rei-guerreiro adormecido, mas na figura de um muçulmano colocada numa das edículas laterais. Por sua vez, o conjunto tumular de Sancho I, o infiel era representado pelo judeu, duplamente presente nas alusões à decadência da Lei de Moisés e no baptismo das crianças judias., acompanhadas pela Igreja triunfante sobre o judaísmo. Estávamos perante uma nova ideologia de cruzada, onde o mouro não era o único inimigo a combater. A crónica de D. Afonso Henriques, escrita por Duarte Galvão, em 1505, dar-nos-ia conta desta realidade no próprio prólogo. Dedicada a D. Manuel, a crónica, que permaneceu manuscrita até 1728, traduzia o reconhecimento da acção de Deus nos feitos dos reis de Portugal e por eles nos portugueses, assim como a consolidação de uma casa real que já produzira catorze monarcas, incluindo o Venturoso. Segundo o cronista, os reis de Portugal e os portugueses eram os obreiros de feitos traçados por Deus, segundo os seus ocultos mistérios, assim como o próprio D. Manuel, cujo nome queria dizer “Deus connosco”, era o obra do desígnio divino para expulsar os Judeus e os Muçulmanos de Portugal, instituir a religião cristã como única no reino e continuar a guerra contra o Islão [36]. As palavras encomiásticas com que se referia ao primeiro rei de Portugal, são significativas: “... ho muy esforçado, e manifico Rey D. Affonso Anriques, primeyro Rey de Portugual, fundamento loguo proprio, e necessario, por Deos ordenado para tam alto cume da gloria destes Reynos, como nelle edeficou, segundo que seu immenso louvor nom menos se verà aho diante accrescentado, e conformado pelos Reys seus sucessores...” [37]. Ourique aparecia mencionada logo na enunciação da linhagem de onde ele descendia. Mas Duarte Galvão trazia um novo registo de milagre de que o primeiro rei tinha sido actor. Nascido defeituoso dos membros inferiores, a Virgem Maria aparecera em sonhos a Egas Moniz, seu aio, indicando um lugar onde uma cura milagrosa seria operada na criança Afonso Henriques, “porque meu filho quer por elle destroir muitos imiguos da Fée” [38]. Também aqui, a narrativa do acontecimento bélico apresentava ligeiras mudanças: os portugueses perante a multidão de mouros recearam combater; Afonso Henriques incitou-os à luta com um discurso pela fé; a visita do ermitão, que se apresentou como enviado por Deus a anunciar-lhe a vitória e a aparição ao toque do sino da ermida; a visão e a interpelação do príncipe a Cristo; a adoração; a aclamação; a vitória; a escolha do armorial real. Acrescentava o cronista que: “... ho que tambem se affirma que neste apparecimento foy ho Principe D. Affonso certeficado por Deos de sempre Portugual aver de ser conservado em Reyno... E mais se affirma que por ser esta ha vontade de N. Senhor cõfirmou-o depois hum parceyro de S. Francisco homem santo, que veyo ha Portugual...” [39]. Vinte anos depois, Acenheiro escrevia também sobre o mesmo assunto na Crónica do primeiro rei de Portugal. Aqui não encontramos a referência ao eremita e a visão de Cristo crucificado não ocorre durante a noite, mas durante o dia quando se dirigia para o combate. O cronista de Évora trazia ainda a novidade da relação temporal da batalha com o dia de S. Tiago. Também ele relacionava a batalha com as armas de Portugal [40]. Um pouco diferente era a versão apresentada por Damião de Góis na sua obra Lisboa de Quinhentos. Nela o milagre do aparecimento de Cristo crucificado a Afonso Henriques mantinha-se, mas surgia, novamente, o diálogo entre este e Deus: “que o senhor lhe prometera a vitória mas o rei, inflamado pela fé, respondera assim: “Eu creio firmemente que Vós sois o Filho de Deus e verdadeiro Salvador do Mundo; por isso não é preciso que a mim Vós mostreis. Ide, mostrar-vos aos inimigos da nossa religião, para nós não sofrermos tamanhas desgraças e para êles acreditarem em Vós e conhecerem que, só com a Vossa morte, o mundo vive e se salva”. Em memória deste acontecimento, Afonso Henriques pusera no seu escudo de cor branca, cinco escudetes azuis para lembrar os cinco reis mouros vencidos e em cada um cinco pontos brancos, em ordem quincuncial, para significar as chagas de Cristo. E acrescentava um segundo significado: somando os cinco escudetes com os vinte e cinco pontos obtinham-se os 30 dinheiros por que Judas vendera Cristo [41]. Em conclusão, podemos dizer que a independência de Portugal frente a Castela sofreu um processo de legitimação, alicerçado num discurso que iria assentar na ideia de um reino por acção divina, desde a sua origem. Este discurso sedimentou a refundação do reino com D. João I, envolvendo-o, por acção dos seus mentores crúzios e franciscanos, talvez de espirituais franciscanos, numa ideia messiânica a que não foi alheia a sétima idade, iniciada pelo Mestre de Avis e referida como “quem jogueta” por Fernão Lopes. Como “quem jogueta”, dizia bem o nosso cronista, não fosse a suspeição de heresia macular o discurso da legitimação do novo rei e da nova dinastia. Estamos, no entanto, perante uma visão messiânica dessa legitimação do poder. De facto, D. Afonso Henriques, D. João I e D. Manuel ou, mais tarde D. João IV, têm em comum um carisma que lhes foi conferido pela eleição divina, que os transformou de figuras secundárias, desconhecidas, em heróis fundadores ou em heróis carismáticos, de “escondidos” em desejados ou enviados. Eles foram escolhidos para “cumprir” Portugal, na sua identidade intrínseca, forjada na luta contra o infiel e na autonomia em relação a Castela.
Notas [1] Livro de Leis e Posturas, Faculdade de Direito, Lisboa, 1970, p.127-128. [2] Livro de Leis e Posturas, p.196. [3] Chancelarias Reais. Chancelaria de D. Pedro I, Centro de Estudos Históricos, INIC, Lisboa, 1981, p.47-49. [4] Damião de Góis, Crónica do Príncipe D. João, ed. crítica de Graça de Almeida Rodrigues, UNL, Ciências Humanas e Sociais, Lisboa, 1977, p.14. [5] Fernão Lopes, Crónica de dom João I de boa memória, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1973, vol. I, p.2. [6] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p.362-363. [7] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p.363-369. [8] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p.371. [9] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p.369. [10] Ordenações de D. Duarte, Fundação Calouste Gulbenkian, p.626-627. [11] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p.3. [12] Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro I, ed. Civilização, 1965, cap. XLIII. [13] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, caps. XXIV, XLVI, XCV, CXI, CXXIII, CLXIII. [14] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, caps. XCV, CII, CXI, CXXII, CXXXIII, CLXXXI. [15] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, p.342. [16] António Cruz, Santa Cruz de Coimbra, Coimbra, 1964, p.278. [17] António Cruz, ob. cit., p.307. [18] António Cruz, ob. cit., p.360-361. [19] Livro de Linhagens do conde D. Pedro, ed. crítica de José Mattoso, Academia das Ciências, Lisboa, 1980, p.126-127. [20] Livro de Linhagens, p.243. [21] Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. crítica de Lindley Cintra, Academia de História, Lisboa, 1990, vol. IV, p.224-225. [22] António Cruz, ob. cit., p.275. [23] António Cruz, ob. cit., p.277. [24] António Cruz, ob. cit., p.317. [25] Leonor de Portugal, imperatriz da Alemanha. diário de viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein, ed. e trad. de Aires do Nascimento, ed. Cosmos, Lisboa, 1992, p.37. [26] António Cruz, ob. cit., p.292. [27] António Cruz, ob. cit., p.252, 257, 291, 293 e 294. [28] Livro de Arautos, ed. Aires de Nascimento, Lisboa, 1977, p.248 e 250. [29] Livro de Arautos, p.258. [30] Crónica de Portugal de 1419, ed. de Adelino de Almeida Calado, Universidade de Aveiro, 1998, p.20-21. [31] Ana Isabel Buescu, O milagre de Ourique e a história de Portugal de Alexandre Herculano. Uma polémica Oitocentista, INIC, Lisboa, 1987, p.78-79 e 125; Idem, “A memória das origens. Ourique e a fundação do reino (séculos XV-XVIII), in Memória e poder. Ensaios de História Cultural (séculos XV-XVIII), eds. Cosmos, p.13-28. [32] Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, ed. de J. Veríssimo Serrão, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1973, p.90-91. [33] Garcia de Resende, Crónica de D. João II, p 86. [34] Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reys Catolicos, ed. de Antonio de la Torre e Luis Suarez Fernandez, Madrid, 1960, vol. II, p.412-420. [35] Garcia de Resende, Miscelânea, p.343. [36] Duarte Galvão, Crónica de D. Afonso Henriques, Lisboa, 1727, Prólogo. [37] Duarte Galvão, Crónica de D. Afonso Henriques, p.1. [38] Duarte Galvão, Crónica de D. Afonso Henriques, p.4-5. [39] Duarte Galvão, Crónica de D. Afonso Heniques, p.20-25. [40] Chronicas dos Senhores Reis de Portugal, in Inéditos de História Portugueza, Lisboa, Imprensa Nacional, 1926, vol. V, p.23-24. [41] Damião de Góis, Lisboa quinhentista, Lisboa, 1937, p.32-33. ![]() | |||||||
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